21.5.16

Sem emenda - Paralaxe

Por António Barreto
As memórias e as biografias dos dirigentes políticos são interessantes. Já não têm influência, mas oferecem a oportunidade de rever a história. E ajudam-nos a compreender episódios que, sem a dimensão pessoal, poderiam ficar misteriosos. O problema é que as versões contraditórias sobre os mesmos assuntos são inevitáveis.

O que, esta semana, sobre a Cimeira dos Açores, nos disseram Jorge Sampaio e Durão Barroso, não foge à regra do erro de paralaxe. Este decorre, segundo os dicionários, de um desvio óptico. Muda o observador, mas parece que é o objecto que mudou. Isto é: tudo depende do ponto de vista. Se, com observadores, o erro é possível, com protagonistas é provável. Os ângulos de visão de Sampaio e Barroso provocam visões diferentes do objecto. Este último, no caso vertente, não é pequeno: é a guerra e a paz.

Foi em 2003 que se realizou a cimeira que precedeu a guerra do Iraque. Bush, Blair, Aznar e Durão Barroso conversaram durante umas horas. O Português era o anfitrião. A participação de Portugal nas operações que se seguiram não estava em causa. Mas a hospitalidade tinha valor político. A meio do Atlântico, acolhida por um membro da NATO cujos membros estavam divididos, o local da reunião tinha mais significado do que o expediente geográfico.

É um momento forte da diplomacia e da posição de Portugal no mundo. De avaliação das alianças internacionais. E de decisão importante para a paz e a guerra. O então Chefe de Estado, Jorge Sampaio, e o então Primeiro-ministro, Durão Barroso, não têm hoje a mesma visão do que se passou. Tinham ideias diferentes sobre os méritos da questão, o que não é inédito nem grave. Que tenham hoje recordações diferentes é mais aborrecido. Mas útil. Porque podemos aprender com a história. Ou antes, com as histórias.

Dias antes do início da guerra, já os jornais portugueses falavam dessa iminência, garantiam que a reunião dos Açores era a última tentativa pacífica e relatavam declarações do presidente americano segundo as quais os americanos estariam dispostos, com ou sem autorização das Nações Unidas, a atacar o Iraque. Os mesmos jornais sublinhavam que Durão Barroso concordava com o ataque militar.

Temos duas versões do mesmo acontecimento. Em quem confiar? Não tenho nenhum motivo para acreditar piamente no que me dizem Sampaio ou Barroso, sobretudo se estão um contra o outro. Creio que nunca saberemos a verdade. A não ser por fé, o que não parece ser bom critério. Mas é possível, mesmo sem testemunhas autênticas, reflectir sobre o caso.

Se Sampaio tem razão, não é admissível que, sobre assunto tão importante, o Primeiro-ministro o tenha informado tardiamente. Ou lhe tenha ocultado o que estava em causa e omitido conversas com os aliados. Se Sampaio tem boa memória, o que se passou é inadmissível. Ou antes: é sintoma do sistema de semipresidencialismo em que vivemos. Sampaio não devia, em tema tão grave, dizer apenas “nada a opor”. Sampaio não pode dizer que ficou estupefacto e deixou correr. Sampaio não podia desconfiar da urgência e nada ter feito para impedir a precipitação. Sampaio não pode dizer que tinha reservas e desculpar-se com a falta de competências do Chefe de Estado.

Se a memória de Barroso é mais fidedigna do que a de Sampaio, não é admissível que em assunto tão grave o Presidente da República tenha apenas dito “nada a opor”. Nem que se tenha mantido passivo. Se Barroso está a dizer a verdade, o que se passou é inadmissível. Dois dias de prazo são insuficientes. Dispensar o acordo do Chefe de Estado ou satisfazer-se com o “nada a opor” é erro. Aceitar o “nada a opor” é não perceber que o presidente “lavava as suas mãos”.

Portaram-se ambos mal! Por decisão ou ocultação. Mais uma pérola para as aventuras do semi-presidencialismo!


DN, 15 de Maio de 2016

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6 Comments:

Blogger José Batista said...

Não, os responsáveis primeiros do país: presidente da república e primeiro-ministro não estiveram bem nas suas posições e (não) decisões sobre o desencadear da guerra contra o Iraque.
Portugal fez a figura do fraco que se cola ao forte, acriticamente, cobardemente. Ou seja, fez fraca figura, como é costume quando é preciso tomar decisões firmes e claras.
De Barroso nunca esperei mais, diferente ou melhor. De Sampaio, em quem votei, esperava mais, muito mais. O seu estilo britânico, fleumático, com componente indecisa, deixou-o aquém das minhas expectativas, que eram elevadas quando, presidente da câmara de Lisboa, anunciou a sua candidatura a presidente de república, descontando o facto de eu não concordar que alguém eleito para desempenhar uma função se sirva dela como trampolim para "voos" mais altos.
E Sampaio voltaria a estar mal quando aceitou a "fuga" de Barroso para a Europa, onde teve um desempenho, quanto a mim, igualmente a tender para a cobardia de "amochar" perante os poderosos. Mas sobretudo, por ascender a primeiro-ministro um "pedro das cachopas" como Santana Lopes.
Enfim, o país foi e vai pagando tudo, com língua de palmo.

21 de maio de 2016 às 20:25  
Blogger Ilha da lua said...

Num assunto tão grave, as duas versões não me parecem uma questão de ponto de vista. Penso que se ocultou aos portugueses esta decisão. Durão Barroso sempre quis ombrear com os grandes decisores mundiais (sempre em bicos dos pés) Basta lembrar, o tempo que esteve na Europa(mais papista que o papa),referia-se a Portugal(com graves problemas)como a um país ao qual não estivesse minimamente ligado. Agora tenta branquear a imagem, na tentativa que a história não o julgue severamente. Quanto ao Dr. Sampaio, sinceramente a sua atitude desiludiu-me bastante.Por estas e por outras, talvez tenha chegado o momento de pensarmos seriamente, se o sistema semi presidencialista é o ideal para o nosso país

21 de maio de 2016 às 22:06  
Blogger SLGS said...

Não posso de deixar de concordar plenamente com os comentários, que em minha opinião se complementam, de "José Batista" e "Ilha da Lua".
No entanto e apesar de tudo, dou alguma tolerância à atitude de Durão Barroso, (no caso das Lages que não na fuga para a Europa)tentando compreendê-la. Vejamos: no Mundo, quem era, à altura dos acontecimentos, Durão Barroso? PM de um pequeno país, sem qualquer força militar ou política que, no entanto, é soberano da "Sala" onde os senhores da Força e da Política, decidiram reunir. Apesar da soberania, esse PM, não tinha FORÇA para lhes proibir a entrada ou expulsá-los, dada a sua pequenez. Não nos esqueçamos que, o mais forte, até tinha a Sala apalavrada/arrendada.
Como perante factos não há argumentos, o PM decidiu que melhor seria estar presente e fazer de anfitrião, do que ser exposto à indignidade de ver a "Sala" invadida e nada poder fazer. Capacidade para decidir sobre a discussão em causa, não tinha...foi servir o whisky, o vinho ou qualquer coisa, como faz qualquer bom anfitrião quando na sua sala se reúnem os amigos para uma partida de Poker, King ou Sueca.
Só isso!!!!!!!!!!!

22 de maio de 2016 às 16:18  
Blogger Ilha da lua said...

A considerar, o ponto de vista do SLGS. Quem sabe, se por isso mesmo, o Presidente da República não terá dito "nada a opor"? Mas, na minha opinião,numa situação tão delicada e constrangedora, não invalidava que o então PM português elucidasse os seus cidadãos,alegando, as mesmas razões que o SLGS tão bem explicou.Seria uma atitude democrática, digna e corajosa. Em democracia, transparência é precisa!

22 de maio de 2016 às 21:49  
Blogger SLGS said...

Ilha da Lua, também concordo!

23 de maio de 2016 às 00:05  
Anonymous Anónimo said...

É importante referir que o autor deste post, bem como Durão Barroso, apoiaram a invasão do Iraque, ao contrário de Jorge Sampaio.
Dizer que ambos tiveram culpa é, no mínimo, uma forma de resolver a questão que só serve para aligeirar as culpas de quem defendeu a invasão daquele país.

29 de maio de 2016 às 12:27  

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