5.11.14

O futuro dos meus netos

Por Maria Filomena Mónica

QUANDO OLHO o rosto melancólico da Rita, a alegria espontânea da Joana ou os olhos marotos do Miguel, dou por mim a imaginar se os tempos que os esperam serão melhores ou piores do que aqueles que conheci, eu, nascida em plena guerra mundial, num país tão pobre que nem dávamos pela fome a nosso lado, num mundo tão fechado que as aldeias nem precisavam de muralhas para encerrar os horizontes dos seus habitantes.

Os dias estão sombrios e é fácil entregarmo-nos às delícias da auto-flagelação. Mas não nos deveríamos orgulhar, nós, aqueles que nos entusiasmámos com a Revolução de 1974, do que legámos aos nossos filhos e netos? A liberdade política, a abertura do país à Europa e a redução da miséria não são coisas menores. É verdade que todos os dias me queixo, esquecendo que vim de uma noite tão escura que me parece irreal.

Não é popular dizê-lo, mas a minha geração devia orgulhar-se do que fez. Não custa imaginar que o desaparecimento de um Império, o fim de um regime autocrático e a existência de um partido comunista cujo estalinismo era único na Europa democrática pudessem ter conduzido a tumultos mais graves do aqueles a que assistimos. Hoje, ainda há corrupção, mas não mais do que nalguns países europeus; ainda há desigualdades sociais, mas nada que se compare à dos anos 1960; há partidos descredibilizados, mas não temos uma polícia política, nem uma censura, nem deportamos gente para o Tarrafal. As Universidades são más, mas não piores do que aquela que frequentei. O analfabetismo desapareceu e a taxa da mortalidade infantil colocou-nos num lugar de que nos podemos orgulhar. Portugal mudou e mudou para melhor.

Há dias, perguntei à minha fisioterapeuta, uma rapariga de 30 anos, se a avó dela, uma camponesa pobre de Viseu, teria sido mais ou menos feliz do que ela. Sem hesitar, disse-me: «Mais, e sabe porquê? Ela nunca saiu da aldeia onde nasceu, não tinha expectativas, contentava-se com o que a terra lhe dava; ora, eu quero doutorar-me, sei que posso ter uma vida melhor se voltar para a Suíça, onde fiz o ensino secundário até o meu pai, que para ali emigrara como pedreiro, ter tido um acidente.» Sorrindo, acrescentou: «Sim, eu quero subir na vida e é por isso que sofro mais do que a minha avó».

Muito poderia ter sido feito de forma mais justa e eficiente, mas isso não nos deve levar a menosprezar o que conseguimos, de que há a destacar o Serviço Nacional de Saúde, que salvou da morte a minha neta Joana, que acompanhou a minha mãe até aos últimos dias e que agora se ocupa de mim. É importante lembrar isto num momento em que tudo, à nossa, e à minha, volta parece ruir. Não podemos cruzar os braços, desistindo de tentar fazer mais e melhor.

Ao pensar que posso não viver muitos mais anos, quero acreditar que o futuro não será menos doce só porque parti. Os meus netos ficarão por cá, guardiões, segundo espero, dos valores em que acredito e nos quais foram criados. O futuro é deles. E é por consideração por eles que, embora existam razões, não me entrego ao pessimismo. Tenho a certeza de que cada um à sua maneira saberão escolher o seu caminho.
«Expresso» de 1 Nov 14

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2 Comments:

Blogger José Batista said...

Sim, há (muitas) coisas muito melhores do que há meio século. Muitíssimo melhores. Das que são referidas só tenho dúvidas acerca do analfabetismo, que me parece longe de desaparecer, e chego a temer que possa voltar a aumentar...
E contudo, o pessimismo vai alastrando, alastrando...
Naturalmente, a opção só pode ser a luta tenaz, sem desistência. Corajosamente.
Mas também eu, em momentos de maior tristeza e raiva, preciso que me lembrem disso.
Obrigado.

5 de novembro de 2014 às 20:49  
Blogger SLGS said...

"(...) É importante lembrar isto num momento em que tudo, à nossa, e à minha, volta parece ruir.
(...)E é por consideração por eles que, embora existam razões, não me entrego ao pessimismo. Tenho a certeza de que cada um à sua maneira saberão escolher o seu caminho."

Para uma DOUTORA de OXFORD, o português anda muito esquecido.

6 de novembro de 2014 às 15:34  

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