4.10.14

São Francisco pregando o mural aos pássaros

Por Ferreira Fernandes
Banksy pinta paredes e o meu vizinho toca trompete. Quer dizer, o meu vizinho anda a aprender a tocar trompete, e às três da manhã. Eu até às três da manhã era capaz de desculpar o Chet Baker, se ele quisesse voltar e ser meu vizinho. Os pinta-paredes são insuportáveis. Contra eles eu até admitia que voltasse o pouco higiénico hábito de esvaziar os bacios pelas janelas. Os pinta-paredes do Bairro Alto, por exemplo, era o que mereciam: "Lá vai água!", janela aberta, bacio virado e o grito só depois, apanhando os imbecis dos pinta-paredes desprevenidos. Todos? Não Banksy, que é o Chet Baker dos pinta-paredes. Como Chet Baker era o Banksy dos trompetistas. Que pena ele, que morreu há tantos anos e nunca frequentou o meu bairro, já não poder acordar-me às três da manhã. Felizmente, ainda há Banksy, ouvi falar de um mural dele em Clacton-on-Sea.
Em Clacton-on-Sea, em outubro, faz dez graus e chove - morrinha, como é costume no Essex, Inglaterra, mas sempre pingos que escorrem pela gola da gabardina -, com oceano cinzento em frente e um porto (Harwich) ao lado. É preciso querer muito lá ir, para ir. Eu ia. Por causa do mural. Eu conto (podendo só trair, porque a genialidade de Banksy é sempre traída): de um lado um grupo de cinco pombos cinzentos, do outro uma andorinha de peito verde. Todas pousam num fio que é sugerido pela separação das pedras, porque Banksy, como sabem, é um artista urbano, um pinta-paredes dos bons, perdão, o pinta-paredes bom. Perdão, ótimo. Aquilo que ele pinta atira-nos à cara. Uma parede dói. O que arde faz bem.
O grupo tem cartazes e os pombos parecem angry birds, pelo olhar franzido. Confirma-se com o que dizem os três cartazes. Um diz: "Os imigrantes não são bem-vindos." Outro diz: "Voltem para África." E o último: "Não toquem nas nossas minhocas." As letras são pintadas de cinzento, o que torna mais duro e agressivo o que dizem porque o cinzento não grita, diz com brutalidade calma. Os cinco pombos jogam em casa, pombos são sedentários. Os de Clacton-on-Sea são certamente de Clacton-on-Sea há várias gerações. Os Columba livia, como os pombos de Clacton-on-Sea, são uma espécie que veio do Sul da Ásia mas os atuais de Clacton-on-Sea já se esqueceram, são locais e pronto. Por isso olham zangados para o intruso, a andorinha.
Conheço muitos tipos de andorinhas, andorinha-da-rocha, andorinhão-negro e a minha andorinha-de-rabadilha-cinzenta que ocupava os beirais dos velhos sobrados da cidade da minha infância. Não conheço nenhuma andorinha de peito verde, suspeito que é liberdade do artista. Mas a mensagem é clara, o rabo bifurcado do passarito mostra que Banksy quer mesmo que seja vista como andorinha. Pássaro errante, viajante, imigrante. Hoje vou ver um amigo, preto como as asas de uma andorinha, filho de uma muxiluanda, negra da ilha de Luanda, e vou velá-lo à Basílica da Estrela, Lisboa, Europa. "Lembras-te das andorinhas, João?", certamente tivemos essa conversa. E ele: "Se lembro, irmão. À volta das torres da Sé, ao fim da tarde..." - conversa de gente de outros pousos, como as andorinhas.
Afinal, não cheguei a ir a Clacton-on-Sea, o mural veio ter comigo, apareceu nos jornais. Quando o vi, ri-me. Lembrou-me uma piada antiga, de Coluche, um francês de frases assassinas servindo um coração generoso. Dizia assim, a piada: "Esses portugueses que vêm roubar o pão da boca dos nossos árabes..." Sempre pensei que era assim que se devia atacar o racismo. Levando os racistas até à tolice de onde eles nunca saíram. Julguei, então, que a piada de Coluche era a arma mais eficaz contra o racismo. Depois de ver o mural de Banksy, achei que este ainda era melhor, era São Francisco de Assis pregando, um falar aos pássaros.
Um falar tão necessário que aconteceu que à câmara de Clacton-on-Sea chegaram protestos contra o mural de Banksy, considerando-o racista. E a câmara, como está em vésperas de eleições, marrou como uma barata tonta. Marrou, porque foi assim, violenta: apagou o mural. Como uma barata tonta, porque é imagem que não precisa de explicação, nem para baratas tontas. Os pombos locais, peito emproado, são afinal mais importantes do que nem eles suspeitavam: podem apagar a inteligência. E os tolitos com boas intenções são os idiotas úteis dos pombos emproados. A andorinha verde é a única que sobreviveu ao mural. Voou, porque o natural das andorinhas é ir daqui para ali. 
«DN» de 4 Out 14

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