22.5.14

O poder não cumpre as leis

Por Maria Filomena Mónica
POR SABER que a agonia nem sempre é indolor, há uns anos comecei a preocupar-me com a forma como serei tratada no final da vida. Esta semana fui entrevistada pela RTP, a fim de responder a algumas perguntas sobre o meu livro «A Morte». Lembrava-me que, há dois anos, lera qualquer coisa sobre a legislação relativa ao testamento vital. Fui conferir. De facto, a 16 de Julho, o Parlamento tinha aprovado uma lei, a 25/2012, regulando as «directivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital e a nomeação de procurador de cuidados de saúde», tendo, em simultâneo criado «o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV)». No capítulo V, relativo às Disposições Finais, declarava-se ter o governo a obrigação de regulamentar a lei no prazo de 6 meses. Esperava que o Executivo tivesse cumprido o seu dever, estando já tudo legalizado ou, caso contrário, que o Parlamento tivesse chamado à pedra os governantes. Nem uma coisa nem outra.

Além de importante per se, este caso ilustra a forma como as leis são tratadas em Portugal. Depois de terem dormitado no hemiciclo, uma vez em casa os deputados descansam. Ora, sem a regulamentação da lei nº 25/2012 não podemos redigir a «directiva antecipada de vontade», nem esta ser introduzida no sistema informático que permite aos hospitais saber se o doente que acolheram redigiu ou não um testamento vital. Consultados alguns juristas, informaram-me placidamente

que, em geral, os governos não cumprem os prazos para a regulamentação das leis. Quem estivesse moribundo durante estes últimos 22 meses – entre a promulgação da lei e a sua actual regulamentação - que aguardasse.

Infelizmente, tenho de lembrar o óbvio. O Parlamento não serve apenas para elaborar leis, mas para vigiar as acções – neste caso inacções – do Executivo. Quando, como é o caso, o problema é complexo, fica tudo em banho-maria. Está no Diário da República, não está? O resto pouco interessa. Designados pelos secretários gerais, com a cumplicidade de um eleitorado que apenas sai de casa «para botar o papel», os deputados estão no hemiciclo como num emprego: assinam o ponto como fossem funcionários públicos, entram e saiem da sala ao ritmo da sineta, levantam-se e sentam-se conforme as ordens do chefe.

Quanto ao governo, não estamos melhor servidos. Afirma o Dr. Henrique Martins, presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) - os nomes e acrónimos que eles inventam! -  terem existido «dificuldades técnicas». Se isso é verdade, deveriam tê-lo previsto. Há uma frase de Platão que não me sai da cabeça: «Um povo digno não carece de leis que lhe digam como agir responsavelmente, ao passo que um povo indigno encontrará sempre maneira de as contornar». É por sermos como somos que nos tornámos especialistas no desenrascanço. Muitos portugueses gostam do diagnóstico; eu não. O que acabo de escrever não é um ataque à democracia representativa, mas a sua defesa.
«Expresso» de 17 Mai 14

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

A propósito de democracia participativa e da qualidade da nossa democracia, apeteceu-me transcrever um artigo do Professor Miguel Mota, hoje saído no jornal "Público"

O professor catedrático em Ciências
Políticas José Filipe Pinto escreveu, no
Diário de Notícias de 24-4-2014, sobre
os “três dês” do 25 de Abril. Desse
artigo, transcrevo:
“As eleições, agora sim, são tão livres
como na livre Inglaterra”.
As eleições para o Parlamento
inglês são por círculos uninominais,
isto é, cada círculo eleitoral elege um
deputado, que naquele país tem o nome de member
of Parliament (MP). Os candidatos (de sua iniciativa
e não “nomeados” por alguém) podem pertencer
a um partido político ou serem independentes. Em
democracia, o poder pertence aos cidadãos eleitores
e, portanto, esse é um dos direitos inerentes.
O candidato mais votado (não necessita de ter
maioria absoluta) é eleito MP. A Inglaterra elege
650 MP. (A população da Inglaterra é de 53 milhões
de pessoas, mais de cinco vezes a de Portugal, que
elege 230 deputados.)
Em Portugal, os círculos eleitorais coincidem
com os distritos. Alguns círculos elegem dezenas
de deputados, outros um número muito menor.
Enquanto o círculo de Lisboa elege 47 deputados e o
do Porto 39, o de Portalegre elege dois e os de Évora,
Beja e Bragança elegem três cada um.
Os eleitores não se podem candidatar a deputados,
uma liberdade que os ingleses
têm. (Na outra ditadura,
podiam. Mas os entraves
postos à sua eleição eram
tais que só conseguia ser
eleita a lista apresentada pela
União Nacional, o partido
único.) Em Portugal, os candidatos a deputados
são exclusivamente apresentados pelos partidos e
em listas com ordem fixa. Um tal sistema é muito
“conveniente” para garantir que alguns candidatos
(muitos, nos distritos que elegem muitos deputados),
os primeiros da lista, estejam eleitos à partida, algo
que não existe em democracia, excepto nos casos
de candidato único. As listas são elaboradas por
quem manda nos partidos e de forma tão ditatorial
como as da antiga União Nacional. Há anos, numas
eleições gerais, os dirigentes locais de um partido
(PS) declararam não querer um candidato que
era cronicamente eleito por esse partido. Mas o
secretário-geral decidiu, ditatorialmente, que esse
candidato seria o cabeça de lista e foi mesmo eleito.
Noutro caso, também há bastantes anos, vi e ouvi,
na televisão, o chefe de uma distrital de um partido
(PSD) declarar que quem nomeava os candidatos da
sua distrital era ele. Como o sistema é o mesmo para
todos, isto podia suceder com qualquer partido.
Os eleitores têm toda a “liberdade” de escolher
uma de meia dúzia (ou mais) de listas de candidatos
que, repito, têm ordem fi xa e imutável.
Será que alguém pode dizer que, em Portugal,
“as eleições, agora sim, são tão livres como na livre
Inglaterra”?

22 de maio de 2014 às 22:19  

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