17.2.14

Já Não Quero Ser Espanhola

Por Maria Filomena Mónica 
CONSIDERO o sexo uma actividade sobrestimada, para o que em muito terá contribuído a Igreja Católica. Bem pode o Papa proclamar que a hierarquia deve abandonar a obsessão com o que se passa na cama; na prática, sacerdotes e fiéis não pensam noutra coisa. Há dias, o Patriarca de Lisboa decidiu regressar ao tema, declarando que, em Portugal, se «facilita» o aborto, uma frase só entendível se tivermos em mente o que se passa em Espanha, ou seja, a polémica à volta da lei apresentada pelo Ministro da Justiça, Ruiz-Gallardón.
Antes, quero explicar o título deste artigo. Nos primeiros dias de 2002, sob o impacto da exposição Goya: La Imagen de la Mujer, escrevi um artigo intitulado «Eu Quero Ser Espanhola». Fascinada com a riqueza da cultura espanhola, desejava passar o resto dos meus dias no Prado. O espectáculo da direita espanhola fez-me voltar ao redil. O Conselho de Ministros espanhol aprovou, há semanas, um ante-projecto onde se declara que a malformação do feto deixa de servir de razão para a interrupção voluntária da gravidez e se prevê que o aborto apenas se possa fazer em dois casos: o de grave perigo da saúde, física ou psíquica, da mãe (o que exige a passagem desta por um labirinto de médicos) ou de uma gravidez fruto de violação (desde que a mulher tenha, na devida altura, apresentado queixa na Polícia). Há coisas que não entendo: um embrião, fruto de uma violação, tem um estatuto menor do que aquele que surge de uma relação consentida? Mistério ontológico.
Não só a lei corre o risco de ser aprovada em Espanha, como a União Europeia está a ser o centro de um debate inédito. Nada entendo da legislação europeia, mas julgava que, em matérias de «vida», competia a cada país decidir. Assim é, mas existem zonas cinzentas. Dois artigos do Tratado de Lisboa (o 11.º e o 24.º) permitem que, uma vez aposto um certo número de assinaturas numa petição, algumas coisas, incluindo o financiamento de investigações feitas com embriões in vitro, possam ser decididas em Bruxelas. Ora, tal como a petição está redigida – nela se afirma não haver diferença entre um embrião, um feto e um recém-nascido – a porta fica aberta para que o aborto seja visto como uma infâmia.
O limite mínimo para se poder apresentar uma iniciativa legislativa deste tipo é de 1.000.000 assinaturas, o que já se conseguiu. Em Espanha, a campanha One of Us está a ser dinamizada pelo ex-Ministro do Interior de Aznar, actualmente vice-presidente do Grupo dos Partidos Populares Europeus, Jaime Mayor Oreja. Entrevistei-o há pouco em Bruxelas. Sabia pertencer a uma família conservadora (eu tinha frequentado, em Londres, o colégio onde também andara uma tia sua) e que era destemido (fora implacável na luta com a ETA), mas não o imaginava tão reaccionário. No acto de apresentação do documento em causa proclamou a necessidade de se travar «uma batalha global em defesa da vida», sublinhando que a luta teria de deixar de ser nacional para se tornar europeia. O fanatismo religioso está em vias de ressuscitar pela mão de um espanhol.
«Expresso» de 17 Fev 14

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