31.1.14

Um falso estúpido e mau

Por Ferreira Fernandes 
Um dos malefícios do passar dos anos é que vamos ficando órfãos, e órfãos, e órfãos... Agora, foi Cavanna. 
Outro problema com o passar dos anos: temos de explicar as nossas memórias. François Cavanna foi um humorista francês bête et méchant, estúpido e mau, como ele se dizia. Ele foi o pai de dois jornais de humor violento, o Hara Kiri e o Charlie-Hebdo, filhos dos anos 60. Tirando a liberdade das mulheres, nenhum valor social e moral se prolongou mais depois de Maio de 68, em França - e pela importância da França de então, na Europa -, do que o pôr em causa o respeitinho "devido" às instituições, protagonizado pela mordacidade daqueles dois jornais. 
Outro ícone de 68, o esquerdismo político, rapidamente se revelou conservador e estéril, enquanto o riso sem peias foi autêntico e resistente. Ao partir, na quarta-feira, Cavanna (1923-2014) deixou transformado em arma o gentil humorismo de jeux de mots (jogos de palavras) que ele encontrara. Filho de imigrante, um pedreiro italiano, ele foi na esteira de tantos que deram à terra de asilo francesa glórias literárias e artísticas. Foi autor de romances, um deles Les Ritals (uma homenagem aos seus, imigrantes italianos), no qual a língua francesa - escrita com o amor intenso que os recém-chegados por vezes lhe têm - serviu para mostrar que o seu género bête et méchant escondia um imenso respeito pelos homens. Resumindo? Um europeu, como os funcionários de Bruxelas nem sonham.
«DN» de 31 Jan 14