24.12.13

Uma Noite Silenciosa

Por Maria Filomena Mónica
A INTUIÇÃO vale muito, mas a Ciência vale mais. Desde há anos que suspeitava sofrer de hiperastesia (sensibilidade anormal ao barulho), mas não tinha provas. Agora, possuo-as. A fim de verificar quando tinham lugar os arrasadores «picos» da minha tensão arterial sistólica, o médico obrigou-me a estar ligada a uma máquina que a mede ao longo de 24 horas. Acabo de receber os resultados: está tudo bem até ao momento em que entro num Centro Comercial.
Sempre me defendi do barulho: na Universidade, depois de me ter refugiado num corredor húmido do antigo Convento das Trinas (hoje ISEG), mandei colocar fibra de lã nas paredes do meu gabinete da Rua Miguel Lupi, com o intuito de me defender das conversas dos colegas que ocupavam os escritórios vizinhos. Só me sentia bem em bibliotecas, fosse ela a Nacional, em Lisboa, ou a Bodleian, em Oxford. Quando os meus filhos saíram de casa, optei por vir trabalhar para uma cave onde não chega o rumor do mundo. Não desejo a paz do sepulcro, mas tão só a oportunidade para me ouvir pensar. O silêncio é-me tão essencial quanto o oxigénio que respiro. 
Para quem pensa como eu, chegou a pior época do ano. A estes, lembro que a arte é um antídoto espiritual ao materialismo do Natal moderno. Foi por saber isto que ressuscitei as reproduções que possuo de algumas telas de V. Hammershoi, um pintor dinamarquês praticamente desconhecido em Portugal. Vi a sua pintura, pela primeira vez, na Tate Modern. Estava eu junto a uma sala de onde saíam ruídos de uma qualquer «obra-prima» contemporânea, quando, na secção «Natureza Morta, Objectos e Vida Real», me deparei com um quadro diferente. Em «Interior, Luz do Sol no Soalho» (1906), raios do sol poente penetram por uma janela, ao lado de uma porta fechada. Apesar de o pintor ser nórdico, nada há ali de gélido. Pelo contrário: a luz doce, reflectindo-se no soalho, consola. É um daqueles momentos de harmonia que, uma vez por outra, os deuses nos oferecem ao fim da tarde. 
No passado mês de Outubro, quando fui a Paris, voltei a encontrar um dos seus quadros no Museu d´Orsay. Em 0 Repouso (1905), vemos uma mulher de costas, sentada a uma mesa onde, sobre uma toalha grossa, está uma taça branca. Lembrei-me de outro quadro, presente numa exposição organizada, em 2008, pela Royal Academy de Londres, no qual a mesma mulher, ainda e sempre de costas, está a tocar música (Interior com uma Mulher num Piano, 1901). A figura é Ida, sua mulher e sua musa. Mas não é ela que me atrai, mas a paz que à sua volta se respira. 
As telas de Hammershoi constituem o oposto do Natal moderno, rodeado de barulho, de objectos e de sentimentos desencontrados. Apesar de, em menina, ir à Missa do Galo numa capelinha em S. Pedro de Alcântara, onde ouvia o Adeste Fideles  (supostamente composto pelo nosso rei D. João IV), não permaneci uma adepta. A canção natalícia de que mais gosto é a austríaca Stille Nacht. A todos, um Natal silencioso, é o que desejo. 
«Expresso» de 21 Dez 13

Etiquetas:

3 Comments:

Blogger Táxi Pluvioso said...

A idade não perdoa, o declínio do envelhecimento dá sentido à vida e põe tudo na sua correta perspetiva.

BOM NATAL

24 de dezembro de 2013 às 11:03  
Blogger Agostinho said...

A propósito de Natal, música e ruído pergunto se há alguém que goste da pirosice da música "ambiente" a par de publicidade manhosa que inunda as ruas e lojas das cidades deste país? Quem autoriza esta agressão?

24 de dezembro de 2013 às 15:52  
Anonymous Anónimo said...

Santo Natal para si Filomena e família.
O silêncio e o recato são música também e espaços de Paz.
Gostei muito do seu texto.

25 de dezembro de 2013 às 09:22  

Enviar um comentário

<< Home