29.5.13

A resistência cultural

Por Baptista-Bastos
UMA ONDA de loucura está a assolar Portugal. Ninguém acredita nas possibilidades de regeneração do Governo, e a presença dos estrangeiros que o elogiam torna-se numa afronta inqualificável. O que estes cavalheiros, mandatados por interesses cujo fito é a hegemonia económica, propagandeiam é a boa consciência da mentira. E o problema maior, entre todos os grandes problemas que nos afligem, constitui a aquiescência cúmplice de quem tem por dever repudiar o enredo. O presidente do Eurogrupo, de nome impronunciável, e é "muito amigo" de Vítor Gaspar, viajou para Lisboa, a fim de manifestar o aplauso comovido pelas orientações até agora seguidas, e insistir que continuar com o "ajustamento" conduzir-nos-á a uma felicidade incomparável. Temos de empregar todos os meios para precipitar a nossa queda o mais fundo possível para, mais tarde, acedermos a uma sociedade tão jubilosa como igualitária.
Este escândalo de se procurar a felicidade pelo terror "explica-se" pela necessidade de socorrer o capitalismo a qualquer preço, "custe o que custar", na conclusão brutal de Passos Coelho. Nada é respeitado, tudo é permitido. O milhão e meio de desempregados; as 69 mil crianças em iminente perigo; a sonegação aos fracos rendimentos dos reformados e pensionistas; o êxodo do melhor da nossa juventude, toda esta criminalidade obedece à mesma lógica de depredação que obriga um grupo tão importante como o Teatro Aberto, de grande tradição cultural e ética, a estar ameaçado de fecho. Uma absurda "grelha de avaliação" colocou a companhia em 39.º lugar, com as consequências inerentes à perda de apoios, necessários à sua sobrevivência. João Lourenço, um homem de rara qualidade moral, que já venceu várias guerras e que testemunhou várias alterações históricas, veio dizer-nos que ele e o grupo sempre procuraram uma verdade que justificasse as obsessões do presente e aclarasse a natureza de uma agressão que fere todos nós.
O encenador evocou as etapas de um empreendimento generoso, que tem submetido à nossa reflexão alguns dos grandes temas das sociedades e dos problemas essenciais do homem. A disponibilidade de João Lourenço em romper com o imobilismo, numa época em que a decência quase não tem direito de cidadania, corresponde a uma denúncia da mentira.
A noção de que a colectividade portuguesa está em escombros tem de encontrar, na resistência de quem recusa a capitulação, o conforto de uma afirmação de coragem e de dignidade. O projecto de uniformizar as diferenças e a natureza díspar das nossas sociedades está em marcha. O Teatro Aberto, tal outros grupos, denegou a inocência como justificação para a cumplicidade. Não o esqueçamos.
«DN» de 29 Mai 13

Etiquetas: