21.5.12

"Deus não quer, François!"

 Por Rui Tavares
CONHECI em tempos um casal em que ambos eram fervorosos crentes na existência de Deus. Bem, talvez mais do que isso: ambos alegavam falar com Deus. As discussões eram engraçadas: “amor, Deus agora não quer que tu toques viola” — “mentira, amor, é Ele que me está a pedir”. As escolhas de restaurantes, de roupa e de meios de locomoção passavam pelo mesmo processo.
Eu ainda admito que se possa falar com Deus; mas nunca acreditei que Deus pudesse responder. Até ontem, quando o avião de François Hollande foi atingido por um relâmpago quando viajava de avião para jantar com Angela Merkel logo a seguir à sua tomada de posse. A comitiva teve de voltar para trás e mudar de aparelho, mas mesmo assim lá foram de charola para Berlim e o encontro lá teve lugar.
Não, não e não! Mas tu não vês, François? Deus não quer! Até Deus, na sua infinita paciência, se pergunta: “mas quando é que a esquerda aprende?” e “quando é que a Europa muda?”
Tu não precisavas de ir a correr para Berlim, François. A Merkel fez questão de não receber-te quando eras candidato à presidência. Claro que irias visitá-la, mais tarde ou mais cedo, mas não teria de ser logo depois de tomar posse. E, se era para discutir a União, deverias ter deixado claro que havia um lugar próprio para o fazer: Bruxelas. Berlim é uma capital europeia, mas não é a capital da Europa.
As duas perguntas de Deus, aliás, estão ligadas: a Europa só muda quando a esquerda aprender. Seja a fazer oposição ou a governar, é preciso passar a entender a dimensão europeia como distinta das meras relações entre governos de Estados. Em época de crise, sobretudo, a falta da dimensão europeia leva os estados a encerrarem-se em posições determinadas pela visão mais mesquinha dos seus debates nacionais e a relacionarem-se, no máximo, de forma bilateral. Ora, uma coleção de relações bilaterais não faz uma União.
Para haver uma União tem de conseguir apresentar-se uma visão que una partes das sociedades de todos os estados-membros no interesse comum de atingirem um alto nível de desenvolvimento económico, social e ambiental. Se se disser que uma taxa sobre as transações financeiras, complementada com outra sobre a poluição, cujos recursos alavancados moderadamente por dívida europeia (até agora praticamente inexistente) poderiam relançar a economia de todo o continente, a começar pelos seus pontos mais fracos mas beneficiando toda a gente — isso pode ser um discurso que, mobilizando os cidadãos, crie uma União.
A insistência em relações bilaterais acaba por criar uma realidade em que “a Alemanha” quer x e “a França” quer y — e os cidadãos, na sua multiplicidade, ficam como se não tivessem vontade. Para nós, particularmente, isto é grave. Os principais prejudicados da falta de uma democracia europeia são os pequenos países.
Infelizmente, para que a esquerda (o centro-esquerda e a esquerda radical, raios: a esquerda) aprenda que é do seu interesse que a Europa se faça, será necessário muito mais do que um raio. Será necessário ver o colapso da Grécia, o contágio a Portugal, a calamidade na Espanha e na Itália — e o euro condenado. Quando será que a esquerda aprende? Não respondes, Deus?
«Público» de 16 Mai 12

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