29.3.12

O livreiro insolente

Por Manuel António Pina

A POESIA tem justificada má fama. Chamar poeta a alguém, no Parlamento ou no Estádio da Luz, é maior insulto do que chamar intelectual a Pacheco Pereira, como fez Valentim Loureiro num dia em que se achou mais pachorrento. E temos que convir que, se "ser poeta é" o que Florbela Espanca diz que é e os Trovante andam por aí a "dizê-lo, cantando, a toda a gente", compreende-se que assim aconteça.

Imagine-se agora que, num determinado "país de poetas", um insolente livreiro decide abrir uma livraria exclusivamente dedicada à poesia. Era bem feito que lhe chamassem poeta, ou ainda menos. Foi o que aconteceu. Ao fim de mais de três anos a juntar e vender ociosidades numa obscura rua do Príncipe Real, em Lisboa, a livraria "Poesia Incompleta" fechou ontem portas. Ainda por cima sem dívidas, o que hoje é coisa ainda mais insultuoso do que "poeta".

Alguém deveria ter explicado ao jovem empreendedor Mário "Changuito" Guerra que a única forma de manter durante três anos uma livraria exclusivamente dedicada à poesia e chegar ao fim com uma pequena fortuna é começando com uma grande fortuna. Não foi, obviamente, o caso.

Anunciou o livreiro que irá doar (ou doer, não sei) os milhares de volumes que lhe sobram nas prateleiras ao omniministro Relvas. Só que, tal como "assustar um notário com um lírio branco", pôr Miguel Relvas ao alcance de Kavafy, Camões e Rilke cai decerto sob a alçada da lei antiterrorista.
«JN» de 29 Mar 12

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