19.12.08

O Meu Cadáver

Por Maria Filomena Mónica
A HISTÓRIA MOSTRA que o uso dos cadáveres é uma questão delicada. Nem é preciso ir tão longe quanto o Egipto do faraó Ptolomeu I para disso termos consciência: basta lembrar o que aconteceu em 1846, quando Costa Cabral legislou sobre enterros, levando o Minho a revoltar-se e o país a uma guerra civil. Importa ainda recordar que, durante séculos, a utilização de cadáveres para experiências médicas foi proibida. No século XVIII, optou-se por usar os corpos dos criminosos executados para dissecação, mas com a proliferação de escolas de Medicina, verificou-se uma falta crónica de material. Nessa altura, ninguém doava o corpo para a Ciência, uma vez que as massas populares, devotas, acreditavam na ressurreição corpórea literal.
Não é fácil determinar o momento preciso em que alguém morre: será quando o coração deixa de bater ou quanto o cérebro paralisa? Só em 1968, depois de os médicos terem determinado que a morte residia no cérebro, os legisladores e os juízes americanos aceitaram o conceito de morte cerebral. Foi então que o coma irreversível se tornou na linha que separa a vida da morte, um facto que abriu as portas à doação de órgãos. O assunto é, como se vê, polémico.
Excepto entre nós. Há cerca de quinze anos, optou-se, em Portugal, pelo princípio do «consentimento presumido», ou seja, o Estado decretou que, ao invés do que sucede nos países de tradição liberal, os cadáveres lhe pertencem. Não gosto da lei por muitas razões, sendo que a principal é o facto de me retirar a possibilidade de ser solidária, uma vez que gostaria de espontaneamente doar os meus órgãos. Como de costume, o Estado preferiu desconfiar de nós. Mais uma razão para lhe pagarmos na mesma moeda. Acabo de fazer o trabalho de casa. Eis o que descobri: em 2006, dos 42 hospitais acreditados para recolha de órgãos, apenas 22 o fizeram; os outros não se deram à maçada. Em suma, não foram os cidadãos a faltar à chamada, mas o poder político.
Junho de 2007

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