17.8.08

As referências na criação

Por António Barreto
NINGUÉM É ABSOLUTAMENTE ORIGINAL. Ninguém cria a partir do nada. Criar começa por ser “acrescentar qualquer coisa”. Um olhar, um facto, uma interpretação ou uma composição. Mesmo as “revoluções”, estéticas, filosóficas ou científicas, têm como ponto de partida a vontade de romper e de renovar os termos das questões anteriores.
As escolas, os estilos, as correntes de pensamento e as modas fazem-se por sucessivos desenvolvimentos, por acrescentos e variações ao que estava previamente adquirido. Quando ocorrem rupturas ou fundações, os seus responsáveis não estão libertos das ferramentas anteriores, da linguagem, das formas de expressão ou do saber acumulado. No século XX, artistas, pensadores e cientistas multiplicaram-se em rupturas e criação de novos “paradigmas”. Por vezes, fizeram-no de modo abrupto, com violência na destruição do que os antecedia. Mesmo assim, não dispensavam filiações de método ou de inspiração, nos antigos gregos, no Renascimento ou nas Luzes. Sócrates ou Galileu, Leonardo ou Bach, Shakespeare ou Mill inspiraram à distância de milhares de milhas e de séculos.
É por isso que as referências são essenciais. Umas são explícitas, conhecidas e assumidas. Outras são implícitas, escondem-se por detrás da nossa memória, dentro do nosso conhecimento e à volta da nossa experiência ou do que julgamos ser a nossa experiência. Mesmo esta, frequentemente traidora, é muitas vezes a aprendizagem da experiência dos outros. Quantas vezes não julgamos sinceramente estar a ser originais e não nos limitamos a repetir o que assimilámos? Por isso a crítica e o debate são essenciais à honestidade e ao rigor.
As referências são muitas vezes o resultado de um acto de liberdade. A escolha de referências é fruto de uma selecção e de uma aprendizagem. Por isso podem ser contraditórias. Na Sociologia, escolhi por exemplo Tocqueville, Marx, Weber e Aron, entre outros, reconhecendo a quase absoluta incompatibilidade entre eles. Cada um trouxe-me algo, a síntese, se é que existe uma, é minha. Terei sido inteiramente livre nas minhas escolhas? Não terei já sofrido influências e condicionamento? A minha resposta é ambiciosa: a liberdade reside na capacidade de escolha de influências. Por isso falo de referências, não de mestres, patrões, mentores ou ídolos.
Na Fotografia, os nomes que povoam a minha memória são August Sander, Stieglitz, Steichen, Eugene Smith, Walker Evans, Dorothea Lange, Edward Weston, Cartier-Bresson, Sebastião Salgado, Castello Lopes e outros, diferentes e contraditórios. Não sigo ninguém, tento não copiar e procuro a minha maneira (e quantas vezes não consigo encontrá-la de modo nítido...). À medida que se interioriza a experiência de outros, tentamos modificá-la, dar-lhe nova vida. É o que fazemos mais ou menos livremente, com mais ou menos capacidade de inovação. Mas não conseguimos, nem queremos, afastar todas as inspirações e todas as experiências. Essas são as referências. Caso contrário, seriam o catecismo e a regra.
Na ciência, na política, na filosofia, na música ou na pintura, a nossa liberdade mede-se pela capacidade de escolha de referências, o que implica empatia e crítica, em doses variáveis, mas elevadas. A nossa criatividade consiste na capacidade de acrescentar, modificar e variar o legado que recebemos.
NOTA (CMR): esta e outras crónicas do mesmo autor estão também no seu blogue, o Jacarandá

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2 Comments:

Blogger peciscas said...

Quando somos mais jovens, temos sempre a convicção de que encarnamos a originalidade.
Que rompemos com o passado de forma definitiva.
Nos meus dezassete anos, fazia parte de uma tertúlia, que se juntava na "Nova Gomes" ali para a o mercado, na Bila.
Com o (então) Padre António Cabral, o teu irmão Nuno, o Eduardo Guerra-Carneiro.Por vezes o Manuel Areias, o João Dixo. Tu, António, aparecias menos vezes.
Nessa altura, eu que não sabia quase nada de filosofia, de correntes estéticas, de política, participava, alegre mas reverentemente (era mais novo e os outros já começavam a ter "obra feita").
No entanto, estava a despertar para o sonho de "um novo mundo".
E não dava conta de que, afinal, tudo aquilo era o retomar de muita coisa que já tinha sido dita, iniciada, experimentada.
Mas essa é uma fase fundamental da nossa vida.
Depois, vamos acumulando experiências, digerindo as tais referências de que falas, na tentativa de chegarmos às sínteses pessoais. Que serão sempre "relativamente" pessoais.
A marcha da Humanidade e das suas personagens mais ou menos visíveis, é sempre um encadeado de passos, uma passagem de testemunhos que não tem princípio nem fim.
Mas há pessoas que conseguem libertar-se mais dos "mestres", dos "donos do pensamento" e, com essa libertação, sentirem-se mais mais próximos da insubmissão original.
Foi por isso que, a breve trecho do meu percurso de vida, fui questionando as tais referências. Dialogar e ouvir, foi essencial para me libertar de alguns dogmas que povoavam o meu imaginário.
Mas será que me libertei completamente?
Penso que, embora tudo se acabe por misturar,por se diluir, permanecerão sempre os resquícios das fontes em que bebemos.
Mas a sensação de liberdade a que chegamos quando sentimos que fizemos essa depuração essencial, é deveras gratificante.
Penso que, pelo que vou acompanhando no teu percurso, também chegaste a essa sensação.

17 de agosto de 2008 às 19:07  
Blogger Fernando Sosa said...

Ideia simples e clara, tal como o post, mas muito bem trabalhado e que nos faz pensar (bem, para mim é repensar o assunto, em que pelos vistos também não tenho a originalidade).
Considero também, sendo ou não intenção do autor, que este post serve de aviso e travão à arrogância de muitos que se consideram inovadores e pioneiros. Claro que também existem aqueles que realmente trazem algo de novo à sociedade, quaisquer que sejam as suas fontes de inspiração, e que merecem reconhecimento.


"A nossa criatividade consiste na capacidade de acrescentar, modificar e variar o legado que recebemos." Esta frase resume tudo na perfeição.

19 de agosto de 2008 às 01:09  

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