15.6.08

Praga de rãs

Por Nuno Brederode Santos
DE VERÕES MALDITOS está o meu Inverno cheio. Contudo, vivemos cada um deles com o pasmo de um apocalipse sem causas, uma praga de rãs, um ajuste de contas com deuses que não são nossos.
Reconheçamos, porém, que poucas vezes o destino e a sorte colectivos foram testados nos limites como agora. Porque a convergência dos factores também foi rara.
Primeiro, instalou-se a ideia de que o constrangimento do défice externo estava superado. E, portanto, havia "folga" (designação folgazã de um país entristecido para designar o dinheiro comum que, se não for, desde já, por uns apropriado, ainda corre o risco de ir parar ao bolso de outros). Este fenómeno tem como emblema mais recente uma senhora a movimentar-se numa cozinha industrial primária, confeccionando pastéis de Tentúgal, e a revelar a um canal de televisão que não recebia qualquer apoio do Estado. Um amigo meu, que nem reza ao liberalismo económico, comentava, estupefacto: "Mas por que raio havia o Estado, o nosso Estado, de financiar os pastéis de Tentúgal?" Nunca lhe consegui dar resposta.
Segundo, estamos a um ano de eleições. Há cultores da "rua" que, de há tempos, vêm reclamando - servindo-se de boas e de más razões - que ela traz consigo uma legitimidade própria, paralela à das instituições democráticas. A chamada "governabilidade" das maiorias absolutas esbarra frequentemente neste pequeno contratempo: tudo o que não se consegue fazer no Parlamento arreia os cabazes na praça e o jargão de feira suburbana demonstra-nos em directo o que vale a retórica das gravatas.
Terceiro, a crise é real. Por importada que seja, ninguém cura de saber donde sopra a miséria que se lhe instalou em casa. (Ironicamente, aliás, as crises do nosso apocalipse - a financeira, a alimentar e a ambiental, agora seguidas pela institucional da União Europeia - chegam a galope ao mesmo tempo, pouco depois de um conjunto de medidas sociais certas, mas também de uma simbólica descida do IVA em 1%, que me pareceu um símbolo demasiado caro). O que, se não legitima, pelo menos agudiza a pulsão das "greves de Verão". Por um lado, são as falsas greves com que algum patronato ataca o bolo da "folga", lançando na praça pública assalariados, conscritos para a guerra alheia por já saberem a lógica que os envolve: se o patrão não ganha nada, a primeira fome é a dos seus filhos. Armadores e transportadoras conhecem as regras. Numa verdadeira greve, os trabalhadores param e reivindicam melhores condições de vida e trabalho contra os seus patrões - e a greve tem um risco: o de o incómodo causado à população a levar a posicionar-se contra a greve e, portanto, a favor do patronato. Aqui é diferente: o patronato - sobretudo o que não quer ver o Estado lá por casa, quando a mesa é farta - exige do Estado o que é de todos, manda os seus trabalhadores paralisarem o país ou um sector da economia e associam-lhes o destino pessoal ao desenlace. Depois, copiam, para efeitos mediáticos, o dialecto sindical e exigem o diálogo com as autoridades. É quanto basta para soltar o desespero e os rancores mais primários. É quanto basta para que haja quem dê a própria vida na desordem.
A crise dos transportadores de mercadorias acabou bem ("mas podia ter acabado mal", disse Mário Lino). Pelo que a imprensa relata, até acredito que o preço pago ficou aquém do que podia ter sido. Mas o precedente deixou uma lápide no chão para lembrar a todas as aristocracias assalariadas, que, por poderem produzir muito mais dano do que as vantagens que reivindicam, a arruaça destruidora e o contingentamento da liberdade dos outros valem a pena. E a lembrar também aos suscitadores destes desacatos de agora um caminho possível para resolverem qualquer crise de amanhã. Por isso, é necessário um esforço maior do que o esperado na criação de alternativas e na redução da dependência, mas visando só efeitos de médio e longo prazos. Mas, por isso também, vale a pena que a PGR leve por diante - agora - os escassos casos que, ao que parece, ela ainda tomou a peito.
É certo ser esse, hoje, o discurso da pior direita. Precisamente a que não tem moral para o dizer, porque, na sua desordenada gula eleiçoeira, tanto cavalga a desordem como a reposição da ordem. Mas isso é o que sucede a quem puder jogar no preto e no vermelho: ganha sempre. Mas ganha sempre numa cor aquilo que perde na outra. Não vai longe: só dá para contar aos netos que ganhou, sonegando o outro tanto que perdeu.
«DN» de 15 de Junho de 2008

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3 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

«...é o que sucede a quem puder jogar no preto e no vermelho: ganha sempre».

Não sou grande entendedor de roletas, mas julgo que há uma excepção:
Há 37 casas possíveis (numeradas de 0 a 36). Quando a bolinha pára no ZERO, quem ganha é o casino.

De contário, o dinheiro apostado passaria apenas de uns jogadores para os outros.

15 de junho de 2008 às 15:07  
Blogger Jorge Oliveira said...

Bolas, estava quase a desesperar por não encontrar a já habitual diatribe contra o PSD, mas no último parágrafo lá vem uma aproximação, desta feita uma referência à “pior direita”.

Suponho que o PSD será de direita, mas talvez para o cronista não seja da pior. E agora com a veneranda Drª Manuela à frente esta distinção é importante. Até os contumazes críticos socialistas têm um pouco mais de tento na prosa. Ao fim e ao cabo a senhora veio prestar um valioso serviço ao PS e ao putativo engº Sócrates: ela dá “credibilidade” ao PSD, virtude que só vem valorizar a próxima vitória de Sócrates nas legislativas. Vencer o coitado do Menezes não dava classe nenhum.

Por isso não deixa de ser sintomático que o “arrasa-PSD” de serviço não tenha chamado a atenção para o facto de a Drª Manuela, líder do maior partido da oposição, se ter abstido de dar uma simples palavrinha à nação (ou seria à raça?) sobre o criminoso boicote dos camionistas. Uma abstenção tanto mais digna de reparo quanto a senhora não perdeu um minuto em vir manifestar a sua veemente crítica à opinião dos irlandeses, maçadoramente contrária ao tratado dos burocratas europeus. Uma burocrata de carreira não podia reagir doutra forma, é claro.

15 de junho de 2008 às 16:47  
Blogger Enigma said...

CMR, tem toda a razão. E que dizer da roleta americana, que além do zero tem o duplo zero?!

15 de junho de 2008 às 23:50  

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