27.5.08

Facas perigosas

Por Alice Vieira
NÃO HÁ NADA PIOR que um funcionariozinho, meu Deus!
Nada pior do que os pequeninos a quererem passar por grandes.
Os insignificantes a quererem aparentar importância.
Os que nunca na sua vida deram uma ordem, a pensarem que mandam no mundo inteiro.
Eu quero só contar uma história muito breve, e desculpem se mete outra vez a ASAE, que começa a parecer-se demasiado com o bombo das festas.
Mas não resisti.
Talvez porque desta vez nem sequer se trata de uma história que ouvi de outros, nem de uma qualquer das milhentas que todos os dias nos entopem o correio electrónico.
Desta vez é história em primeira mão.
Então é assim.
O meu amigo A. mora sozinho num casarão de uma quinta dos arredores de Lisboa. Ao pé da casa grande, a casa do caseiro, que lhe trata de tudo.
De vez em quando o A., que cozinha muito bem, reúne amigos para um jantar onde normalmente nada falta. Mas na semana passada, ou porque tivesse tido muito trabalho em Lisboa, ou por simples esquecimento, faltavam-lhe lá umas ervas que ele considerava essenciais para o cozinhado. Eu ainda lhe disse que prescindia bem delas, mas ele que não, estava em causa a sua fama de “chef” emérito, sem hortelã do ribeiro, ou lá o que era, é que o robalinho não passava.
Fomos então os dois bater à porta do caseiro, numa de “ó vizinho, dá-me salsa”, e quando o homem abre e nos faz entrar para a cozinha, os meus olhos fixam-se gulosamente num conjunto monumental de facas como há muito não via.
Facas para cortar carne, para trinchar aves, para arranjar peixe, para cortar legumes, facas grandes, médias, pequenas, com serrilha, sem serrilha, facas daquele aço alemão muito conhecido – todas dispostas numa flanela, tal como manda o figurino.
Coisa linda de se ver.
E carérrima, evidentemente.
Não me babei de inveja (pensando sobretudo nas minhas facas que nunca cortam nada a não ser os meus dedos…) mas quase.
O A. também estava fascinado e não se conteve:
- Ó homem, isto é que é coisa boa! Saiu-lhe a sorte grande ou foi alguma herança da sua mãe?
O rapaz sacudiu a cabeça e deu uma gargalhada.
- Nada de herança, afirmou. Sorte, talvez.
Porque na véspera tinha ido jantar ao restaurante em frente e o dono, seu amigo de infância, estava perfeitamente inconsolável: o fiscal da ASAE tinha-lhe entrado portas adentro e logo ali mandara deitar fora (inutilizar, quer dizer, não voltar a usar) todo aquele conjunto de facas, que ele trouxera há tempos da Alemanha, e era o seu orgulho.
Tudo porque… tinham cabos de madeira, e como ele já devia saber, não se podia utilizar madeira nos utensílios com que se manipulavam os alimentos.
- Se as quiseres, leva-as, que não me servem para nada — disse-lhe o amigo, e ele claro nem pensou duas vezes.
No fim da história ficámos ali os três, com ar de parvos, a olhar para as facas, sem saber o que dizer.
Cabos de madeira!
É evidente que não foi o Sr. Nunes que fez a apreensão. É evidente que isto é um fiscalzinho a adaptar a lei a seu modo, e a aproveitar-se daqueles segundos em que se sente dono do mundo, porque dá uma ordem e todos têm de lhe obedecer.
Mas são os fiscaizinhos que, cada vez mais, mandam em nós.
«JN» de 25 Mai 08

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8 Comments:

Blogger R. da Cunha said...

Já tinha lido o artigo no DN e devo ter sorrido amargamente.
Mas vamos lá a ver: o senhor Nunes não sabe destas coisas? Se sabe, aprova; se não sabe, é mau, porque a 'coisa' anda em roda livre, ao sabor dos fiscaizinhos.
E as sardinhas de Santo António, como vai ser?

27 de maio de 2008 às 21:20  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Há também os «Chefes máximos do pessoal mínimo», quase sempre uns "badamecos", uns pobres-diabos...

E é verdade que «Não há pior chefe que o chefezinho»: o porteiro que não deixa entrar, o contínuo que manda sair, a secretária que impede o acesso ao Director, a enfermeira que permite (ou não) as visitas...

27 de maio de 2008 às 21:32  
Blogger Antunes Ferreira said...

Ainda hoje a maioria dos meus antigos (in)subordinados do DN me trata por Chefe. O que, para mim, é uma honra. Se alguém se lembrasse de me condecorar com a Torre e Espada (menos era demais...), preferia este tratamento. E até dizem que gostaram e gostam de mim, e, pasme-se, que guardam saudades.

A Alice, que também fez parte do citado grupo, trata-me por Antunes, como sempre me tratou. E eu quero-lhe tanto que ela podia também tratar-me de outra maneira, que eu não me importaria. Agora por chefinho miudinho e mediocrezinho, não! Até porque, sendo um gordo muito gordo, não o podia ser. Por excesso de superfície e exagero de dimensão. Chefinho com carinho - isso sim.

Se eu ainda fosse católico (fui, mas curei-me) rezaria assim: livre-nos Deus dos pequeninos merdosos que julgam que trazem o rei na barriga. E eu - até sou republicano...

27 de maio de 2008 às 22:00  
Blogger vieiradospneus said...

Estranho que no meio do rebanho não haja alguém menos carneiro que pergunte aos funcionários asaeáticos qual é o puto artigo, regulamento, portaria, decreto, etc, onde vem escrito tão cantada proibição da madeira nos utensílios em contacto com alimentos.
Alguém me diz qual é ele?

27 de maio de 2008 às 23:26  
Blogger Eira-Velha said...

A D. Alice é escritora, e escreve bem, mas manifestou-se indignada quando uma tal Carolina se arrogou fazer parte desse universo instelectual...
Eu integro esse universo de "funcionariozinhos" e também me sinto afectado pela desconsideração e pela ideia peregrina e generalizadamente reiterada de que somos a causa de todas as desgraças...

28 de maio de 2008 às 13:44  
Blogger ulisses said...

Foi publicado no Expresso um documento interno da ASAE, em que era estabelecido os objectivos dos inspectores. Cada um tinha que detectar 124 infracções, levantar 61 processos de contra-ordenação,abrir oito processos-crime e fechar ou suspender o funcionamento de pelo menos seis estabelecimentos.
Em vez de locais a inspeccionar, as metas seriam PENALIZAÇÕES a atingir. Têm que dar azo à imaginação...

não sei porquê, lembrei-me do Brecht.

28 de maio de 2008 às 14:58  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

m&m

A notícia do EXPRESSO refere:

«(...)o inspector deu ordens por escrito para os inspectores levarem a cabo este ano 410 detenções, 25.420 processos por infracção, 1.230 suspensões de actividade, 1.640 processos-crime e 12 mil contra-ordenações...»

28 de maio de 2008 às 15:49  
Blogger ulisses said...

é dividir + ou - pelo nº de inspectores

29 de maio de 2008 às 22:01  

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