30.1.08

A voz na televisão

Por Baptista-Bastos
SENTEI-ME PARA ESCREVER um texto saudoso e álacre sobre a Ava Gardner. Acabara de rever, em DVD, A Condessa Descalça, o filme em que Mankiewicz iluminou, vital, os seios míticos e as ancas essenciais da então chamada "o mais belo animal do mundo". Pensava ilustrar a beleza renascentista da imensamente adorada, aplicando, à imaginada crónica, um breve toque intelectual, com uma citação de Shakespeare, que, no Hamlet, faz dizer a Horácio: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia." Há; melhor: havia - a Ava Gardner, síntese de todas as deusas voláteis e etéreas. Os adjectivos não eram maus, pensei, sacudido por áspera nostalgia de mim próprio.
Preparava-me, pois, para comover, levemente embora, os leitores da minha geração, acaso de outras, com estes abandonos líricos, eis senão quando uma voz na televisão, lá dentro, atraiu a minha malvada curiosidade e desviou-me do saudoso intento.
Que dizia a voz, assim tão importante, que sobrelevava as instâncias dos meus impulsos de autor de imprensa? Era um homem. E fazia troça cruel de quem dele desacordava: de sindicatos, de jornalistas, de comentadores, de todos os partidos que não o seu, mas também de alguns daqueles, iguais comungantes, em atrito com o que ele fazia. Não percebi muito bem onde o homem falava: congresso, reunião, assembleia, igreja? Sei que o homem estava a deixar-nos para trás; e não há nada mais penoso do que sermos deixados para trás.
O homem na televisão era somente voz: voz que apenas a si mesmo ouvia; voz inevitável para ela própria; voz impessoal, velha, fatigada como uma solenidade, inconvicta, em pleno processo de desumanização. O homem falava para se ouvir. Falava; não estava a dizer nada.
Elogiava-se e ao Governo que dirigia. Na Saúde, na Justiça, na Economia, na Cultura, no Emprego, na Educação, nas Obras Públicas, tudo deslizava, com suavidade, para o irreversível ponto de exclamação que será a sociedade próspera e abundante. O absurdo atingia a dimensão da inconsciência abjecta. O homem na televisão deixara de o ser: era, unicamente, voz. Voz efémera, que desembarcava numa auto-admiração inviolável; voz de catálogo turístico.
As vozes humanas possuem cor, luminosidade, magia, transcendência, grandeza, música, presença física. A voz do homem na televisão era dissimulada, quadrada e cava. Uma mentira instantânea que se repetia sem perdão. Um eco do oco.
Regressei à Condessa Descalça e à memória da frase de Bogart: "A ilusão procura sempre dar solidez ao vento." Ia para continuar. Mas o meu espaço é este. Que o homem fique com a sua voz; eu, com a minha repulsa. E por aqui me fecho, como diria mestre Camilo.
«DN» de 30 de Janeiro de 2008

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2 Comments:

Blogger joshua said...

Compreendo! Revejo-me nessa tua mesma percepção do Desumano e Inautêntico em tal voz não-Gente, que trucida tudo ao ecoar-em-oco porque tudo lhe parece sacrificável à construção da própria Grande Ilusão Sorridente
a simular políticos triunfos e rendidas aclamações.

A vitimizar-se se contestado. A exprimir desprezo por quem o contesta.

30 de janeiro de 2008 às 12:14  
Blogger António Viriato said...

Apesar de um pedaço mais novo, creio compreender o que BB sente ao escrever certas crónicas amargas, como mais esta que aqui nos deixou.

Repito que não preciso de concordar com tudo, nem com todas as suas referências ideológicas, estéticas ou éticas, para apreciar a sua intervenção política e mesmo cultural, porque, além do mais, BB divulga autores e livros importantes, hoje esquecidos ou quase desconhecidos em Portugal.

Acresce que BB escreve em português de lei, de sabor castiço, outro valor que prezo bastante. E, acima de tudo, gosto da sua frontalidade, coisa em vias de extinção, no ambiente anódino em que vivemos.

É pena que BB permaneça, em certa medida, ainda preso a alguns cânones do tempo do anti-fascismo, tão militante quanto equívoco, mas ninguém é perfeito e nem sempre se consegue fugir a muitos traços e compromissos da sua geração.

Ainda assim, quem nos dera poder contar com uma boa meia-dúzia de colunistas como ele...

Um abraço.

31 de janeiro de 2008 às 00:29  

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