19.8.07

OUTRA VEZ NÓS E O FISCO

Por Nuno Brederode Santos
ENTENDEU O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que o contribuinte que reclama ou impugna judicialmente uma decisão da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos que lhe respeite não pode ser sujeito a levantamento do (seu) sigilo bancário. Esta era uma das duas questões de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da República sobre um diploma da Assembleia da República.
Não li mais do que aquilo que a imprensa publicou, ou seja, pequenos excertos entre aspas da decisão judicial. Por isso me baseio apenas em critérios políticos decorrentes do senso comum e que expressei no DN, no Verão do ano passado, quando o assunto teve alguma dimensão pública. É certo que o senso comum não é o bom senso, mas a obrigação de um critério político é anular essa diferença.
Por cândido ou tecnicamente impreparado que seja o cidadão comum, é sempre atrevimento e estultícia dos governos pressuporem que ele não é sensível aos seus interesses e direitos. Ora esse cidadão, que é um entre os milhões de contribuintes cumpridores, sabe muito bem ser ele quem paga as faltas dos incumpridores. Daí que em nada lhe repugne o acesso do fisco (em condições que assegurem a exclusividade desse acesso) às contas bancárias de todos os contribuintes. Ele quererá a garantia de que o vizinho do lado não lhe vigie os movimentos da conta, nem conheça o saldo desta. Mas compreende dever ser outro o estatuto do fisco. Não há um direito à evasão ou à fraude que cumpra ao Estado acautelar. Não há um direito da personalidade ou um direito à privacidade que sejam violados ou ameaçados pelo facto de a administração fiscal conhecer a origem lícita dos seus rendimentos. E há certamente um direito maior (o de saber que o seu esforço como contribuinte faz parte de um esforço colectivo, ao qual ninguém pode furtar-se) que é acautelado por essa "devassa" igualitária e consentida. Talvez até um dia, quando a cultura tributária portuguesa tiver abdicado do seu laxismo moral e funcional, possamos pactuar um regresso ao sigilo bancário. Mas enquanto decorre um esforço nacional de justa cobrança, cuja insuficiência levou já a aumentar os impostos de gente fiscalmente sobrecarregada, o cidadão tem dificuldade em aceitar o sigilo bancário para efeitos fiscais.
Mas o que ele não pode de todo aceitar é que, por sobre a duvidosa regra do respeito desse sigilo, se abra uma excepção para o contribuinte que mais não faz do que exercer os seus direitos de reclamar ou impugnar (por sinal os últimos e os únicos com que o contribuinte cumpridor, isolado e pequeno, se pode defender de um erro da máquina fiscal que o prejudique). De que nos serve que a lei consagre o direito fácil do cidadão a pedir que o polícia que o aborda se identifique, se outra lei vier dizer que o polícia só se identifica na sua esquadra? Teremos de ser quase detidos para exercer aquele direito? A oneração desses direitos por uma sujeição à devassa (agora, sim, sem aspas) da sua conta bancária, surge, mais do que como um mero condicionamento, como uma autêntica punição. Inaceitável à luz de todos os juízos e, como decorre desta decisão do tribunal competente, também do da constitucionalidade.
Por isso, fez bem o Presidente em exprimir a dúvida e fez bem o Tribunal Constitucional em lhe consagrar o acolhimento. Cabe agora à Assembleia da República pronunciar-se de novo. Mas, já agora, de uma maneira cabal e clarificadora. Isto é, desfazendo a confusão de conveniência entre os que são contra a norma posta em causa porque são contra todo e qualquer acesso do fisco às contas bancárias e os que são contra ela pelo que comporta de discriminatório e punitivo, mas até são favoráveis à regra do levantamento genérico do sigilo bancário para efeitos fiscais. É que nem uns nem outros têm a ganhar com as aparências dessa aliança falsa e enganosa. Pelo contrário: uns e outros trazem consigo uma insanável contradição que irromperá novamente na primeira oportunidade. A hostilidade comum ao gato não faz uma aliança para a vida entre o cão e o rato. Que eu saiba, nunca fez.
«DN» de 19 de Agosto de 2007

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