26.8.07

HERÓIS DO MILHO

Por Nuno Brederode Santos
SOBRE A HORA LIMITE de escrever, cai a notícia da morte de um amigo: Eduardo Prado Coelho. Não fomos íntimos, nem convivemos muito. Depois do 25 de Abril, andámos por sítios diferentes, entre amigos diferentes, e, se como ele notou um dia, "a gente lá se vai encontrando, mesmo que seja uma vez por ano", também tive a oportunidade de o reencontrar, com alguma assiduidade, na Convenção da Esquerda Democrática, promovida pelo PS, e na Lisboa 94, pelo "lado" da Câmara Municipal (de resto, foi também durante as recentes eleições em Lisboa que o vi pela última vez). Mas houve entre nós a cumplicidade dos coetâneos. Quando me iniciei a colaborar em jornais, era tudo a brincar, mas não para mim, que tinha 14 anos. Foi no Diário de Lisboa, no suplemento juvenil, e o Eduardo, que devia ter 15, era já o "veterano" dos colaboradores. Encontrámo-nos então pela primeira vez (creio que no café "Monte Carlo"). Fomo-nos vendo, a espaços. Quando, mais tarde, nos cruzámos na Universidade, notava-se essa cumplicidade que prescinde das intimidades e dos convívios intensivos, essa piscadela de olho a que a morte agora pôs termo.
Daí que os temas sobre os quais pensara escrever se tenham tornado irrisórios e efémeros (provavelmente tão irrisórios e efémeros quanto, de qualquer modo, me iriam parecer se sobre eles deixasse transcorrer uma semana). Mas, acima de tudo, passo a encará-los com muito menos paciência, como se aos factos, antes de ocorrerem, cumprisse a previsão daquela morte e o recato que eu acho ser-lhe devida. Não o penso assim, mas sinto-o assim. E dou a mim mesmo esse desconto.
Na Herdade da Lameira, em Silves, um garrido bando de irresponsáveis destruiu deliberadamente uma plantação alheia. Incapazes de Woodstock ou querendo fazer Porto Alegre ao pé da porta, terão talvez almejado só fazer das férias uma aventura. Um Kerouac On the road, sedentário e preguiçoso. E, já agora, uma biografia política a preço de saldos. Por isso, mascararam-se para a impunidade e confiaram numa glória sem risco. Para meu espanto, invocou-se uma "ordem moral, democrática e ambiental", Thoreau e a desobediência civil e quis-se ver ainda, no pequeno vandalismo, um épico desafio à Monsanto e a todas as multinacionais. Não foi uma cavalgada de Átila: cinco hunos no dorso de outros tantos burros teriam causado o mesmo dano em menos tempo. Mas a escassez noticiosa de Agosto acabou por corresponder da melhor forma às ambições dos intervenientes (entre os quais, muitos "jovens" com o dobro da idade requerida para a responsabilidade criminal). A comunicação social agigantou o episódio e os partidos recriminaram-se entre si. Antecipou-se um banco dos réus por onde passaram a GNR, por alegada insuficiência de efectivos, Miguel Portas, por uns eflúvios quase milenaristas de que depois se retractou, e o ministro da Agricultura, suspeito de roubar um nicho de mercado aos advogados. O primeiro-ministro foi intimado a tomar posição por líderes da oposição que não se deixam intimar pelos seus adversários internos.
Feita que está a festa do debate democrático - que, na origem, foi pensado para coisas mais sérias -, era bom que deixássemos cair as hipérboles e nos entregássemos ao comezinho essencial. Houve uns senhores que destruíram, consciente e voluntariamente, o património de um outro senhor. Parece que ninguém duvida que o facto envolve responsabilidades. Criminal e civil. Proceda-se em conformidade. O tribunal, esse, é pago para ter de ouvir o Thoreau e a "ordem moral, democrática e ambiental". Nós não. Guarde-se, pois, para a sala de audiências o comício, patético e trapalhão. Depois, se os jornais quiserem fazer o favor de nos informar acerca do que o tribunal decidiu, a gente agradece. Se não ocorrer prescrição e ainda nos pudermos lembrar dos factos a que a sentença se refere.
A vida em democracia (e o Estado de direito que a organiza) quer-se rica, não complicada.
«DN» de 26 de Agosto de 2007

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei muito da forma sensata como termina o artigo!
Ab

26 de agosto de 2007 às 15:16  
Anonymous Anónimo said...

Na Hora da Partida e da Verdade - só importa quem fomos de facto. As cores políticas fenecem...

26 de agosto de 2007 às 17:51  

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