31.7.07

VOLTA NÃO VOLTA CAI O ESCÂNDALO NA VOLTA

Por Ferreira Fernandes

ALBERT LONDRES foi um repórter francês , célebre por contar lugares onde não era bom morar. Das prisões da Guiana para onde se mandavam os degredados aos quartéis da África do Norte onde os duros da Legião Estrangeira eram domados com trabalhos forçados, ele viu e denunciou. E é essa testemunha experimentada que, para relatar o Tour, escreveu um livro com este título: Os Condenados da Estrada ou Volta a França, Volta do Sofrimento. E eram os anos 20, quando a prova ainda era gentil e os organizadores, porque ela se fazia por vezes à noite, convidavam os corredores a não fazer barulho quando "atravessassem vilas e aldeias."

Desde aí, volta não volta, cai o escândalo na Volta. Como avisou Albert Londres: "Dante não viu nada!" Para escapar àquele inferno, os corredores procuram pequenos paraísos. Em 1967, Tom Simpson, o primeiro britânico com a camisola amarela, medalhado olímpico, campeão mundial de estrada, subia o Mont Ventoux, onde o mistral sopra a 100 à hora. Estranha caminhada, a de Simpson, em ziguezague, olhar perdido. Cai. Populares das bermas remontam-no para o selim. O olhar continua perdido, as pedaladas hesitantes e queda definitiva. Enroladas na camisola de Simpson, algumas ampolas de anfetaminas. Dir-se-á, porém, piedosamente: o sangue acusou conhaque. Naquele lugar, o vento varre hoje uma lápide. E, cada ano, quando os ciclistas por lá passam, conta a lenda, as pulsações dos corredores dão um salto. De medo e culpa.

De 1954 a 1982, Antoine Blondin acompanhou a Volta a França, relatando-a para o jornal desportivo L'Équipe. No livro com essas crónicas, Voltas a França, escreve sobre o doping: "(...) é a arma ilusória dos mais fracos. Com ele, um mundo que tinha tudo para se afirmar na alegria contagiosa - a audácia, a coragem, a saúde - um mundo se revela possuindo também uma face onde tudo se cala. É a face escondida da Lua, com os seus vales de manha, as suas crateras de suspeita, os seus mares de repressão. É a face escondida da luta."

Doping mau, pois, que repugna a um escritor que era de direita porque o culto de heróis o marcava. Doping que desvirtua o combate dos deuses terrenos. Porém, Blondin escreve também: "Sonhamos com arcanjos, cuja pureza não teme os controlos e que nos dão orgulho na raça humana. Mas admito que haja, apesar de tudo, uma certa grandeza naqueles que foram buscar a não sei que purgatório o melhor deles. Apetece-me dizer-lhes que não deviam, mas emociona-me secretamente que o tenham feito. Os seus olhares perdidos são uma oferenda aos nossos aplausos."

Fomos nós que os viciámos, não em heroína, mas em serem heróis. Temos por eles o carinho que os dealers talvez tenham pelos seus clientes.

Texto: «DN» de 29 de Julho de 2007 - [PH]. O cartoon é de Rodrigo de Matos, publicado no «Expresso-online» («Humoral da História»), e oferecido, pelo autor, ao SORUMBÁTICO

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