30.5.07

RETRATO DA SEMANA

Enfim, só!

Por António Barreto

A SAÍDA DE ANTÓNIO COSTA para a Câmara de Lisboa pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas, se as intenções podem ser interessantes, os resultados é que contam. Entre estes, está o facto de o candidato à autarquia se ter afastado do governo e do partido, o que deixa Sócrates praticamente sozinho à frente de um e de outro. Único senhor a bordo tem um mestre e uma inspiração. Com Guterres, o primeiro-ministro aprendeu a ambição pessoal, mas, contra ele, percebeu que a indecisão pode ser fatal. A ponto de, com zelo, se exceder: prefere decidir mal, mas rapidamente, do que adiar para estudar. Em Cavaco, colheu o desdém pelo seu partido. Com os dois e com a sua própria intuição autoritária, compreendeu que se pode governar sem políticos.

Onde estão os políticos socialistas? Aqueles que conhecemos, cujas ideias pesaram alguma coisa e que são responsáveis pelo seu passado? Uns saneados, outros afastados. Uns reformaram-se da política, outros foram encostados. Uns foram promovidos ao céu, outros mudaram de profissão. Uns foram viajar, outros ganhar dinheiro. Uns desapareceram sem deixar vestígios, outros estão empregados nas empresas que dependem do Governo. Manuel Alegre resiste, mas já não conta. Medeiros Ferreira ensina e escreve. Jaime Gama preside sem poderes. João Cravinho emigrou. Jorge Coelho está a milhas de distância e vai dizendo, sem convicção, que o socialismo ainda existe. António Vitorino, eterno desejado, exerce a sua profissão. Almeida Santos justifica tudo. Freitas do Amaral reformou-se. Alberto Martins apagou-se. Mário Soares ocupa-se da globalização. Carlos César limitou-se definitivamente aos Açores. João Soares espera. Helena Roseta foi à sua vida independente. Os grandes autarcas do partido estão reduzidos à insignificância. O Grupo Parlamentar parece um jardim-escola sedado. Os sindicalistas quase não existem. O actual pensamento dos socialistas resume-se a uma lengalenga pragmática, justificativa e repetitiva sobre a inevitabilidade do governo e da luta contra o défice. O ideário contemporâneo dos socialistas portugueses é mais silencioso do que a meditação budista. Ainda por cima, Sócrates percebeu depressa que nunca o sentimento público esteve, como hoje, tão adverso e tão farto da política e dos políticos. Sem hesitar, apanhou a onda.

Desengane-se quem pensa que as gafes dos ministros incomodam Sócrates. Não mais do que picadas de mosquito. As gafes entretêm a opinião, mobilizam a imprensa, distraem a oposição e ocupam o Parlamento. Mas nada de essencial está em causa. Os disparates de Manuel Pinho fazem rir toda a gente. As tontarias e a prestidigitação estatística de Mário Lino são pura diversão. E não se pense que a irrelevância da maior parte dos ministros, que nada têm a dizer para além dos seus assuntos técnicos, perturba o primeiro-ministro. É assim que ele os quer, como se fossem directores-gerais. Só o problema da Universidade Independente e dos seus diplomas o incomodou realmente. Mas tratava-se, politicamente, de questão menor. Percebeu que as suas fragilidades podiam ser expostas e que nem tudo estava sob controlo. Mas nada de semelhante se repetirá.

O estilo de Sócrates consolida-se. Autoritário. Crispado. Despótico. Irritado. Enervado. Detesta ser contrariado. Não admite perguntas que não estavam previstas. Pretende saber, sobre as pessoas, o que há para saber. Deseja ter tudo quanto vive sob controlo. Tem os seus sermões preparados todos os dias. Só ele faz política, ajudado por uma máquina poderosa de recolha de informações, de manipulação da imprensa, de propaganda e de encenação. O verdadeiro Sócrates está presente nos novos bilhetes de identidade, nas tentativas de Augusto Santos Silva de tutelar a imprensa livre, na teimosia descabelada de Mário Lino, na concentração das polícias sob seu mando e no processo que o Ministério da Educação abriu contra um funcionário que se exprimiu em privado. O estilo de Sócrates está vivo, por inteiro, no ambiente que se vive, feito já de medo e apreensão. A austeridade administrativa e orçamental ameaça a tranquilidade de cidadãos que sentem que a sua liberdade de expressão pode ser onerosa. A imprensa sabe o que tem de pagar para aceder à informação. As empresas conhecem as iras do Governo e fazem as contas ao que têm de fazer para ter acesso aos fundos e às autorizações.

Sem partido que o incomode, sem ministros politicamente competentes e sem oposição à altura, Sócrates trata de si. Rodeado de adjuntos dispostos a tudo e com a benevolência de alguns interesses económicos, Sócrates governa. Com uma maioria dócil, uma oposição desorientada e um rol de secretários de Estado zelosos, ocupa eficientemente, como nunca nas últimas décadas, a Administração Pública e os cargos dirigentes do Estado. Nomeia e saneia a bel-prazer. Há quem diga que o vamos ter durante mais uns anos. É possível. Mas não é boa notícia. É sinal da impotência da oposição. De incompetência da sociedade. De fraqueza das organizações. E da falta de carinho dos portugueses pela liberdade.»

«Público» de 27 de Maio de 2007 - [PH]

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10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quando António Barreto escreveu mais esta lúcida crónica, ainda as autoridades russas não tinham fechado o trânsito na Praça Vermelha para Sócrates fazer o seu joging de 30 minutos!!!!

Não haverá ninguém que diga ao nosso rapaz que há limites para tudo?

30 de maio de 2007 às 11:33  
Anonymous Anónimo said...

Pegunta Rosário M.:
«Não haverá ninguém que diga ao nosso rapaz que há limites para tudo?»

Não. Não há, e cada vez haverá menos, pois JS entrou numa típica espiral de isolamento, rodeado de yes-men.
Cada vez se aperceberá menos dos seus erros e, com maioria de razão, das tristes figuras como a do joging numa qualquer Praça Vermelha privativa.

30 de maio de 2007 às 11:44  
Anonymous Anónimo said...

O título da crónica ("Enfim, só!") refere-se à chamada "solidão dos líderes".
Sócrates é dos que acham que fazem bem em secar tudo à sua volta, mas quando precisar de um amigo a sério não o encontrará facilmente. Quando der por isso será tarde. Tarde para ele e para os governados.

L.S.M.

30 de maio de 2007 às 12:44  
Anonymous Anónimo said...

É sempre um grande prazer ler e ouvir António Barreto, pois é das poucas pessoas no PS que ainda se atreve a pensar pela sua cabeça e a dizer em voz alta aquilo que pensa, mesmo indo contra a linha oficial. É o que faz alguém ser culto, inteligente e não precisar das benesses do poder para viver.
Sei (sabemos todos) que há mais gente assim lá no partido. Mas estarão cansados? Desiludidos? Estarão à espera que cheguem novos tempos? Como é que um partido que nos deu tantos (e tão bons) exemplos de luta pela LIBERDADE se verga perante atrocidades contra a DEMOCRACIA como as da senhora da DREN????

30 de maio de 2007 às 13:56  
Anonymous Anónimo said...

Duarte R.

Eles (e elas) vergam-se a vergonhas como as da dren, da mesma forma q outros se vergavam perante os dislates de Santana Lopes.
O poder cega quem o detém e torna míopes os q gravitam em torno dele. Os yes-men tratam da sua vidinha, temos de os compreender.

30 de maio de 2007 às 14:30  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Pegando no assunto do "jogging" e retomando a metáfora do Harun-al-Raschid (que em tempos já aqui se referiu a propósito dos "yes-men"), aqui vai um pequeno texto:
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Sócrates e «As 1001 Noites»

Segundo nos dizem, Vladimir Putin é cinturão-não-sei-quantos de não-sei-quê - um desportista, portanto. Quer isso dizer que não estamos livres de que, um dia, de visita a Portugal, o Governo Civil mande cortar o trânsito na Praça do Comércio para ele dar umas corridinhas - se tal for o seu capricho? Não me palpita, pois o homem, pense-se dele o que se pensar, aparenta ter o senso das proporções e - por maioria de razão - do ridículo.
Não parece, no entanto, ser esse o caso de José Sócrates, que não se importou nada que um dos locais mais famosoos do mundo (a Praça Vermelha, de Moscovo) tivesse esse bizarro tratamento para que ele pudesse fazer o seu "jogging" matinal.
Ah, como tinham razão os autores anónimos d' «As 1001 Noites» quando punham o califa Harun-al-Raschid a disfarçar-se de mercador para, circulando anonimamente nas ruas e mercados do país, saber o que o povo pensava de si!
Na realidade, é algo de semelhante que falta a muito boa gente que, uma vez alcandorada ao poder (e isolada do mundo-real por uma multidão de "yes-men"), é incapaz de se ver de fora e de se aperceber das tristes figuras que faz...

31 de maio de 2007 às 08:12  
Blogger Pedro said...

Lúcido, como sempre.

31 de maio de 2007 às 18:08  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O comentário Sócrates e «As 1001 Noites» foi publicado hoje, no PÚBLICO (como carta), com corte do último parágrafo.

1 de junho de 2007 às 12:05  
Anonymous Anónimo said...

Os recentes programas de A.B. (na RTP1) foram do melhorzinho que por lá temos visto. Fariam bem em repeti-los (mesmo a horas mortas) ou, no mínimo, colocá-los no site www.rtp.pt onde estão muitas coisas que, em termos de qualidade e interesse, não têm qualquer comparação.

1 de junho de 2007 às 16:23  
Anonymous Anónimo said...

Quousque tandem, Catilina, ou melhor Sócrates?

3 de junho de 2007 às 22:20  

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