23.5.07

Direitos atropelados


Por Manuel João Ramos
O MAIS IMPRESSIONANTE num atropelamento rodoviário é o modo como o peão é projectado pelo ar em pirueta para depois se estatelar no asfalto como uma marioneta desarticulada, com os ossos fracturados e o corpo ensanguentado.
Há três semanas, uma velha amiga foi atropelada em Benfica, por um ligeiro que atravessava uma zona residencial a 100 km/h (a velocidade é presumida pelo rasto de travagem de 30 metros). Está neste momento internada num inferno hospitalar lisboeta com uma fractura craniana, o corpo contundido e a necessitar de reconstituições plásticas.
Foi atropelada porque, para atingir a passadeira onde deveria atravessar, foi forçada a caminhar pela rua, já que o passeio estava totalmente ocupado por automóveis. O condutor não reconheceu qualquer responsabilidade no atropelamento. Considerou legítimo, como aliás 80% dos condutores portugueses, conduzir em velocidade excessiva numa zona urbana, e, pelo que declarou, mostrou não ter consciência da regra do Código da Estrada que estabelece que um veículo se encontra em excesso de velocidade quando não consegue evitar colidir com um obstáculo.
A sua eventual responsabilidade criminal será apurada judicialmente. Mas a culpa da autarquia e das entidades policiais que não promovem uma necessária e urgente acalmia do tráfego, e a dos proprietários dos automóveis estacionados no passeio que provocaram indirectamente o desastre, não será apurada. Porque, quando um magistrado julga um crime rodoviário, nada na lei induz à consideração das suas causas indirectas e à responsabilização das entidades públicas.
A actual legislação vê os peões como incómodos obstáculos à livre circulação automóvel, legitimando, por omissão, o atropelamento generalizado dos direitos pedonais no meio rodoviário. Duas associações cívicas, a ACA-M e a APSI, elaboraram uma Carta dos Direitos do Peão que se rege, completando-a, por uma resolução da ONU. Lançaram um repto a várias câmaras municipais para que a subscrevessem e lançassem programas de protecção dos peões. Propuseram também ao Ministro da Administração Interna que este considerasse a incorporação, num Código da Estrada renovado, dos princípios expostos nessa Carta, de modo a alterar práticas de condução eticamente condenáveis e humanamente intoleráveis.
Poder-se-ia contra-argumentar justificando o presente estado de caça ao peão com a mentalidade do condutor português, com o seu fascínio pelo automóvel e pela velocidade, ou com a inconsciência de muitos peões perante os vários perigos que as autarquias e as entidades fiscalizadoras promoveram ou não souberam impedir. Mas a justificação “cultural” das práticas tendencialmente criminosas de um número excessivo de condutores portugueses é do mesmo teor daquela que justifica o uso da burca pelas mulheres afegãs, a prática da excisão em vários países africanos e o porte de arma nos Estados Unidos: em todos os casos, estamos perante argumentos desculpabilizadores do abuso e da negação de direitos humanos.
Adaptado do «Expresso» de 1 Dez 01

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Para os que acham que, neste aspecto, a Esquerda é melhor do que a Direita (ou vice-versa), tomem nota:

A foto de cima é de uma cidade gerida por uma coligação PSD/CDS.
A de baixo, é de outra, gerida pelo PS.

Em ambos os casos, trata-se de gente eleita e reeleita, mas que se está olimpicamente nas tintas para o ordenamento, para a segurança e para os direitos dos peões.

Mas gosto de os ouvir nas camapanhas eleitorais, a debitar sentenças, promessas e palpites sobre qualidade de vida!

23 de maio de 2007 às 17:54  

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