23.5.07

Curtas-letragens

Náufrago
Por Miguel Viqueira
O RAMALHOSA TINHA CINQUENTA E SETE ANOS quando de madrugada caiu ao mar durante o seu quarto de vigia ao largo da Namíbia. Acordou na água gélida como se uma chuva de punhais o despertasse e com horror viu o barco afastar-se no pavoroso silêncio da noite até se perderem no negrume as pálidas luzes de bordo. Um golpe de lucidez lembrou-lhe que os arrastões vão e vêm na mesma linha de rumo: poderia ser uma questão de tempo, de sangue frio e sorte...
Deixou-se então boiar no mesmo ponto onde caíra, combatendo o frio a esfregar os membros, movendo-se em pequenos círculos, com temperança, o indispensável para se manter à tona, para não queimar mais calorias que as indispensáveis. Ao amanhecer foi descoberto nas águas por uma bandada de gaivotas que sobre ele se abateram sem piedade e o atacaram em tropel com fúria de ratazanas, as ratazanas do mar.
Defendeu-se como pôde das bicadas raivosas que lhe procuravam os olhos e lhe retalhavam as mãos, e aos poucos, coberto de rasgões e cortes que sangravam e enfureciam mais ainda as gaivotas, foi perdendo as forças e a fé, engolindo água, afundando-se na espuma tingida do seu sangue. Quando se dava por perdido, quando julgava que ia mesmo morrer, as gaivotas de repente abrandaram os ataques, um remoinho nas águas à sua frente denunciou uma presença estranha que afastou as aves.
As gaivotas desapareceram, fugindo daquela massa escura que se aproximava. Com definitivo horror avistou então o Ramalhosa um grupo de leões marinhos que nadavam para ele grunhindo, presas em alto. Estremeceu, dando-se por morto e afrouxou os músculos, benzendo-se e encomendando-se a Deus e aos anjos, fechou os olhos e estendeu-se nas vagas, esperando inerte as arremetidas das feras.
Mas os leões rodearam-no sem agressividade nenhuma, antes com delicadeza. Um deles, o maior de todos, colocou-se atravessado contra a sua barriga, para que pudesse flutuar, e outros dois flanquearam-no sob os braços para o manter direito e lhe dar calor. Assim se mantiveram, imóveis, silenciosos, longo tempo, até que o Ramalhosa acabou por perder os sentidos, de exaustão e espanto.
Quando enfim acordou, meio-dia volvido, ainda aconchegado pelos leões, viu ao longe a proa do barco que se aproximava, ouviu gritos e vozes familiares, distinguiu acenos na distância. Os animais só o largaram quando foi finalmente içado para bordo. Deram ainda uma volta em redor do arrastão antes de que o Ramalhosa pudesse vê-los afastar-se com os seus grandes bigodes e as suas inconfundíveis presas, contentes no seu olhar terno de míopes.

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