31.3.07

Salazar e Lúcia reunidos na RTP

E DE REPENTE, parecia que estávamos numa versão a cores do Estado Novo: Salazar transformado no mais popular dos portugueses e a irmã Lúcia elevada à santidade nos altares da televisão pública. Alguém que me belisque, porque só pode ter sido um sonho mau. Foi tão descabida esta semana da RTP que ela deveria corar de vergonha e devolver o cheque a quem a sustenta. E não me venham dizer que a vitória esmagadora do homenzinho de Santa Comba numa votação telefónica não pode ser assacada à estação do Estado - eu digo que pode. Pode, porque a simples existência de mais de 60 mil pessoas que acreditam que Salazar foi o melhor que tivemos em 870 anos de História só é justificável por sermos uma pátria sem heróis nem referências, e por já ninguém se lembrar do que foi a ditadura, o lápis azul, Caxias e o Tarrafal, e sobretudo o país miserável, analfabeto e subdesenvolvido que nos foi deixado por quatro décadas de clausura geográfica e mental. Ou seja, mesmo que a RTP não tenha pecado por acção, ela certamente pecou por omissão: na altura em que a estação comemora 50 anos de vida, e que tanto se orgulha de ter contribuído para a construção de uma memória colectiva, eis o seu brilhante legado: Salazar e a irmã Lúcia.
Sim, a irmã Lúcia. Porque, na mesma semana em que embaraçadamente elegeu Salazar, a RTP mudou-se de armas e bagagens para o santuário de Fátima, para cobrir o centenário da vidente. E fê-lo com a mesma atitude com que há 50 anos cobria os actos do presidente do conselho: com muita devoção e nenhum sentido crítico. Desde logo, pareciam ser mais os técnicos da RTP do que os peregrinos, mas sobretudo nada desculpa o tom sabujo e diabético com que a emissão foi conduzida logo pela manhã. Ainda espreitei pelo canto do televisor, a ver se o cardeal Cerejeira não estava a passar lá ao fundo. Muito há a contar sobre Fátima. Tudo está ainda por dizer sobre Lúcia. Mas a esse trabalho a RTP não se deu. Preferiu colocar o terço na mão e cantar hossanas à indigência intelectual do país. A imagem é hoje a cores, mas a cabeça, essa, continua a preto e branco.
João Miguel Tavares - «DN» 31 Mar 07 - [PH]

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Mediante e-mail já felicitei o João Miguel Tavares por este artigo.

Seja um simples concurso, seja lá o que for, chateia-me solenemente que o sacana do Salazar seja escolhido como o português mais importante de sempre.

Vivi 28 anos sob o regime mesquinho e retrógrado instituído por esse canalha e não me esqueço disso facilmente.

E tenho muito receio de que, com a maioria absoluta dos socialistas e com Sócrates no governo, estejamos na contingência de ver ressuscitadas muitas das características daquele maldito regime.

Paulatinamente, já se fazem sentir os tiques do autoritarismo balofo : a Ota sim, porque eu quero; a energia nuclear não, porque eu não quero ...

Uma intenção deliberada de controlar os órgãos do Estado : concentração do poder numa pessoa; colocação de fiéis seguidores à frente de todas as instituições públicas ; propaganda permanente ...

Estamos a assistir à implementação de uma versão moderna da Acção Nacional Popular.

Há que afastar esta gente do poder. Antes que seja tarde.

JO

31 de março de 2007 às 21:46  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

JO,

Trata-se, num caso como noutro, da aplicação do aforismo:

«Se queres ver um vilão, dá-me um pau para a mão!»

31 de março de 2007 às 21:54  
Anonymous Anónimo said...

Inteligente e límpido, o texto de J. Tavares, sobretudo no que respeita à freira de Fátima. A Televisão de serviço público continua, de facto, fiel ao seu histórico caudilhismo. Foi assim, igualzinho, durante o período revolucionário de 74 e 75. Foi assim, igualzinho, durante a questão de Timor: cegueira informativa, jornalismo vesgo e carneirista. Agora a freira de Fátima, de quem o bispo de Viseu terá dito que teve mais "santidade" do que a Teresa de Calcutá! E isto passa, sem contraditório, na antena pública da RTP. Então a generosa mulher de Calcutá, que dedicou uma vida de labor intenso aos mais desgraçados humanos do planeta, é "menor" do que a pobre mulherzinha de Fátima, cuja vida inteira se passou a comer, beber e dormir, regalada e confortável, sem fazer puto pela comunidade? E a RTP coloca isto em debate? A RTP seria alguma vez capaz de enfrentar as regras básicas do Jornalismo e abrir confronto de ideias? Renovo os parabéns a quem abriu aqui a questão.

2 de abril de 2007 às 12:05  

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