27.12.06

Curtas-letragens

Amanhecer

CHEGOU AOS OITENTA sem maiores problemas que os sobressaltos habituais da vida e então o cérebro decidiu fechar-se ao mundo e repousar. João dos Santos caiu num estranho coma e daí se recusou a sair. Os esforços clínicos ao longo de semanas revelaram-se vãos, nenhum tratamento parecia recuperar e nem sequer estimular o cérebro adormecido, até que os médicos aconselharam enfim desligar a máquina de vida mecânica que o assistia e aceitar, com humildade, o destino: a cama e as atenções eram necessárias para outros. A família dividiu-se em opiniões antagónicas, as discussões por vezes azedas substituíram o empenho, a solidariedade, a fé de todos eles na recuperação. No limite foi Dª Ângela que pôs termo às desavenças e aceitou a responsabilidade de o trazer de volta, de lá onde João estivesse.
As visitas dos familiares à casa-mãe sucederam-se a bom ritmo e sem desfalecimentos durante meses, sempre às mesmas horas, sempre com a mesma duração, uma réstia de esperança na despedida, no beijo lançado e perdido entre os cabelos brancos de Ângela. Depois, as visitas foram paulatinamente espaçando-se, encurtando-se, surgindo as desculpas e as impossibilidades, reduzindo as hipóteses de João à presença constante e inabalável de Dª Ângela.
Nunca disse a ninguém o que fazia para além da rotina sanitária e higiénica com o enfermo, como passava as horas debruadas a silêncio e quietude, como as enchia junto do seu João. Era um segredo que ela guardava tão ciosamente como a intimidade mais sagrada dos seus pensamentos: temia, talvez, que se rissem, ou pior, que a forçassem a desistir e a ter de tomar a decisão última que jamais tomaria por si só. E era um belo segredo.
Começou por Camões, os sonetos e as rimas; Sá de Miranda depois, mais tarde os românticos, depois os modernos. Lia-lhe os poemas em voz baixa, ritmo pausado, como se os pensasse antes de ler, só para ele e mais ninguém. O rosto de João permanecia sereno, em paz, como se dormisse uma interminável sesta. Quando Ângela esgotou a modesta biblioteca caseira, repetiu as leituras, escolhendo aqueles poemas de amor que mais a tocavam: e João dormia. Quando finalmente uma sombra de dúvida se instalou por trás do olhar de Ângela, teve a inspiração definitiva: foi ao cofre das cartas, desatou o laço, abriu uma por uma até que encontrou o poema escrito por João para ela cinquenta anos atrás. Sentou-se junto dele, bem perto do rosto sereno, e leu. Leu como nunca, com emoção contida, a tremer de amor. No fim, o seu João moveu os lábios e com um fio de voz pediu: ‘lê-mo outra vez’.

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5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sim, senhor! Aqui está um conto muito bonito!

Ed

28 de dezembro de 2006 às 08:35  
Anonymous Anónimo said...

Muito belo e muito bem escrito. Assim vale a pena vir a um blogue, em vez de perder tempo com coisas que não valem nada.

28 de dezembro de 2006 às 11:45  
Anonymous Anónimo said...

Cheira a polémica acerca da eutanásia...

28 de dezembro de 2006 às 13:10  
Anonymous Anónimo said...

Ternura, amor, dedicação, esperança e obstinação.

28 de dezembro de 2006 às 18:57  
Anonymous Anónimo said...

Lindo conto. Um amor feito de dedicação, onde basta a alegria do dar e de ter alguém que apenas saiba receber.
Adorei!

31 de dezembro de 2006 às 18:56  

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