21.9.06

Da relevância do bife (*)

PARA que se não critique o carácter aparentemente prosaico do tema desta crónica, invoquemos em defesa o facto de ter sido ele nos idos de 60 objecto de um celebrado ensaio de Roland Barthes nas suas Mitologias: trata-se do... bife.
Em rigor, o bife até é relativamente acessório no tocante às conclusões que se pretende apresentar, mas pode dizer-se que, de facto, ao princípio era o bife! Em concreto, o bife à café, inventado ao que consta nas cozinhas do oitocentista café Marrare. Como se sabe, a esmagadora maioria dos cafés alfacinhas foi sucumbindo, as saudosas frigideiras dando lugar a cofres fortes bancários, secretárias e arquivos, aprestos todos eles incompatíveis com bifes e respectivos molhos. Resistiu um - o Império.
Há alguns meses os lisboetas foram confrontados com a perspectiva desse último baluarte do lombo e da vazia passar a adjacência da IURD.
Verificou-se aquilo a que é hábito chamar um sobressalto colectivo, sendo de elementar justiça sublinhar que papel determinante foi desempenhado pelos trabalhadores da casa, ali profissionais há anos e anos de casa e com aquela ligação ao "seu sítio", que é um dos mais fascinantes traços de identidade humana dessas pessoas que acabam a fazer parte da nossa vida, ali ao lado das mesas onde nos habituamos a jantar e almoçar.
Moções na câmara, artigos nos jornais, gente do património, enfim, alguma coisa se conseguiu. A IURD lá terá recuado e o Império foi anunciado como salvo. Fizeram obras.
Pode ter-se dúvidas sobre uns neons que andam por lá, mas as soluções de cozinha foram inteligentes; o grande ecrã é uma opção que a alguns desagradará, mas o mobiliário é agradável. E, sobretudo, o bife lá está - e o Império.
Isto já seriam tudo boas notícias, mas há melhor. É que, segundo tudo indica, a reabertura foi um êxito, excedeu todas as expectativas, já foi necessário admitir mais pessoal e, na realidade, 15 dias depois de reaberto o café até já adquiriu o ar de normalidade de sempre lá ter estado!
Nestes tempos em que preocupações se acumulam, uma vitória, mesmo no bife - ora pois andávamos a precisar disto.
Até porque, leia-se Roland Barthes, o bife é mitologicamente relevante...
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(*) Crónica de Ruben de Carvalho no «DN» de hoje, aqui transcrita com sua autorização. Ver também uma outra sobre o mesmo assunto, da autoria de Paulo Ferrero, «Bife no novo Império? Não, obrigado»: